A VIDA DE GADO E UM POETA DO POVO

A primeira vez que assisti a um show de Zé Ramalho já vai tão longe que explica o desinteresse da garotada pelo cantor e poeta. Existia o Projeto Pixinguinha, em Brasília, e por meio dele era possível conhecer a obra de artistas nacionais de relevância para a cultura nacional, a um preço popular. Ainda vivíamos a ditadura militar e a ideia dos shows de circo, com platéia reduzida pela dimensão do espaço era dominante.

Tudo mudou, os custos e a escala para shows são outros, o modelo de negócios inclui como pilares de sustentação a venda de bebidas e verbas adicionais por meio de leis de incentivo que deduzem dos impostos o valor que empresas aportam para shows. Uma das coisas que acontecerá com a mudança na ordenação tributária vai mexer com as leis de incentivo, como já está mexendo com a corrida para elevação de alíquotas de ICMS, prestes a extinção.

Quem quiser olhar um acervo de mais de 400 fotografias e matéria da cobertura Areevol, do primeiro show de Zé Ramalho no Shopping, basta clicar no link abaixo:

Fotografias do Primeiro Show de Zé Ramalho no Shopping Bangu

Em seu segundo show no Estacionamento do Shopping Bangu, que se transformou no modismo pasteurizante em “arena” – clara falta de criatividade e perda de identidade cultural local – tal como o assassinato simbólico promovido pela Prefeitura, ao retirar o nome das Lonas Culturais e gastar fortunas para rebatizar os equipamentos culturais dessa categoria de “areninhas”, Zé Ramalho entregou a emoção de sempre, para um povo que cada vez mais se distancia do refrão “vida de gado, povo marcado, povo feliz”, pelo negativismo que o leva a não se olhar no espelho, mesmo quando o poeta repete “o povo foge da ignorância, apesar de viver tão perto dela”. Essas palavras faziam mais sentido num tempo distante, para os mais revoltados com a situação de suas existências. A pauta política mudou, tornando inútil a noção simbólica de um povo-gado, irreconhecível no espelho, mesmo diante de seu cadáver e ossada.

Na oportunidade dos encontros que se acumularam ao longo do show, vejo Alberto, que insistiu em negar sua condição de produtor da região, para logo a seguir me confessar ter trazido em 1996 o autor de Avôhai para a Zona Oeste. Só estava 30 anos adiante dos atuais, nessa iniciativa disruptiva, onde o acesso a cultura sempre foi limitado.

Livre das amarras, dessa vez o show do nosso respeitado menestrel começou com a música do meu querido amigo Geraldo Vandré – sobre quem ainda alimento a ideia de escrever um livro – deixando saudades das flores. Creio que essa escolha não autoral para o repertório traz a mensagem da desnecessidade dos limites autorais para se expressar. Essa noção se repete ao chamar ao longo do espetáculo a presença de Raul Seixas. Uma coisa é ser cover do Raul, ou fazer um álbum em homenagem a ele – como vimos recentemente Xande de Pilares fazer com a obra de Caetano – outra coisa é pinçar um traço identitário e o incorporar a sua própria obra, harmoniosamente. Casamentos perfeitos e criteriosos não ressuscitam gênios, mas os eternizam.

Ouvi de uma pessoa da platéia a afirmação de que Zé Ramalho não havia entregue o bastante pelas bandas de Bangu. Me ocorreu uma metáfora, informei a ela que havia ficado brocha. Já não dava mais 17 fodas a cada noite selvagem, destituído pela idade só seria capaz de 3 com direito a tempo de hidratação. A idade nos obriga a trocar quantidade por qualidade. E no meu entendimento estético, a entidade no palco, entregou a magia.

Quanto a mim, pude pelo menos produzir alguns registros, de qualidade um tanto duvidosa, mas que na interação com o público presente pode ser que deixe alguns felizes. Quem quiser dar uma olhada, é só acessar na nuvem clicando no link sublinhado em azul, a seguir.

FOTOGRAFIAS DO ENCONTRO ZÉ RAMALHO