AS ESCOLAS E SEUS SAMBAS

Finalmente, pude ouvir com a tranquilidade necessária os Sambas das Escolas do Grupo Especial de 2024. Passarei essa noite ouvindo de forma aleatória essa trilha sonora consolidada, manto da tradição. Temos elementos temáticos recorrentes, tais como as homenagens. Nunca foram poucas, funcionam. Num piscar de olhos, me lembro de Roberto Carlos, Ivete Sangalo e o mais recente sucesso, pré-pandemia em 2020 – minha última ida ao Sambódromo – a homenagem a Elza Soares. A última foi forte, levantou a arquibancada com o refrão “Laroyê e Mojubá, liberdade / Abre os caminhos pra Elza passar /Salve a mocidade…”. Mulher forte, assumidamente “flor que não se cheira”, a Mangueira aposta nessa linha, e Alcione representa a base do samba que jamais se apagará.

A palavra que me guia pede que preste atenção, nesse caso a duas: escola e samba. A primeira trata de um lugar onde se aprende, a segunda cuida de definir o que se aprende, no caso música e dança. Sem isso as Escolas de Samba estariam condenadas ao fracasso. É admirável o que se construiu, quem disser que não, passo. É porque já ouvi muita besteira sobre o assunto, algumas fazem parte até de documentários disponíveis em plataformas de streaming. Abordagens sem qualquer fundamentação semântica ou cultural, apenas centradas em fatos que apelam para aspectos de maior audiência. Há uma superficialidade que dá lucro.

Não tem jeito, o resgate da simplicidade associada a uma fruta que dá sem dificuldades no Nordeste, o Caju. Emplacou na boca do povo, que vai bebendo o suco e comendo a castanha. Conta com a leveza e alegria, dispensada em diversas composições. Querendo ou não, mistura o que temos de tropical, sem maiores fundamentações, aplica sem dó a noção de que o povão que vai aos ensaios de rua – e dificilmente estará nas arquibancadas e camarotes – é a cara do Brasil, enquanto uma outra parte deste assistia o BBB. Há uma parte da população que ainda frequenta as ruas. Não tem jeito, não há como esquecer, o dedo de Fernando Pinto, o toque particular de um sênior como Paulinho Mocidade, na extensa lista de compositores dessa obra. Não se compara a Sonhar Não Custa Nada, mas tem atualidade. Ouso dizer, enfim Paulinho, cujo sobrenome é Mocidade, lugar de onde nunca deveria ter saído, coisas do mundo do samba. Levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Afinal, não é possível que o Diretor Marcelo Gulart tenha feito um documentário e profunda pesquisa sobre esse gênero musical e terminado o 1o episódio com esse versátil artista e a Mocidade continuasse sem esse que considero a principal celebridade viva da Escola. O passado pode ser inspirador.

Já a Imperatriz, tem um samba cujo rendimento projeta vitória. Vi o potencial, arrumado para a sorte e prosperidade. Foi inevitável, lembrei, pelo título da música, do livro de Nelson Motta, De Cu Pra Lua: Dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte. Sou de opinião que a leitura enriquece compositores e carnavalescos a produzir carnavais de mais densidade, ainda que homeopáticos para quem assiste o desfile.

A Portela com a auto-afirmação da mensagem da cor de pele e da origem na favela traz muito Axé, associei a letra “andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, de Claudinho e Bochecha. A menção as origens de Angola dá profundidade, refrões bons de cantar. Há um destaque a essa presença em outras obras desse ano.

Sou suspeito para falar do samba que remete a um nobre etíope, instalado em Maceió. Os caminhos da Beija-flor são profundos, trazem uma marca própria da escola, não importa o tema. Mas foi na quadra da Portela que ouvi o samba Glória ao Almirante Negro, e a conexão com João Bosco se fez. Ouvi com atenção que documentos históricos, tal qual feito pela carta da Viradouro que deu pano pra manga de tão criativa, se espalhou como novidade. Há acontecimentos que são tão significativos que acabam se constituindo em novos padrões.

O que vivemos se mistura ao que ouvimos. Como poderia imaginar que essa mesma Maceió que habitou as 1as páginas dos jornais, por conta de um desastre ecológico encoberto por anos da população de Alagoas, na extração de Sal-gema.

Cada Escola de Samba, tal qual um filme de Hollywood, traz em seu desfile uma narrativa enriquecida por música, hoje dirigida pelo equivalente a um diretor de cinema. A narrativa é do carnavalesco, que colherá o sucesso ou fracasso de bilheteria, por ocasião da apuração das notas. A soma de todas as histórias, de algum modo se consolidam em parte da identidade nacional. Não por acaso, o IBGE, que cuida das informações sobre a nossa cara e mazelas, nesse momento concursando profissionais para seus estudos, após cinquenta anos e por exigência da população, passa a explicitar em sua nomenclatura a favela como um lugar que existe oficialmente. Creio que Claudinho, Bochecha e a Portela saíram na vanguarda nessa questão e contribuíram para que parte da população vitima de forte discriminação e preconceito possa se olhar no espelho das Instituições do Brasil.