CONFESSO QUE COMI

Confesso que comi. Mas peraí, não se trata de nada parecido com as conversas de botequim, politicamente incorretas, daquela garotada da Zona Sul que adora contar vantagens sobre suas proezas sexuais para os amigos. O exibicionismo de uma conquista pode ser mais poderoso que a comida em si. Nesse sentido, o filme “E AÍ, COMEU?” é um poço de contradições, incabíveis nas comédias da atualidade, que aliás deixaram de ter graça pra uma geração “desgraçada” pelos filtros e auto-censuras. Acabam bebendo do próprio veneno, implodidos em depressões e ansiedades sem remédio.

Foi o poeta Pablo Neruda que escreveu, “Confesso que Vivi“, uma espécie de auto-biografia desse que foi amigo do Presidente Salvador Allende, morto no Chile na etapa anterior a instauração da sangrenta Ditadura de Pinochet. Não temos ideia de quão hedionda ela foi, visto de fora é até impróprio se pronunciar. Foi desse livro que extraí a analogia do título “Confesso que Comi”, não para falar de uma perspectiva envolvendo culpas, pecados, arrependimentos. Deixo isso para os mascarados e mascaradas, para o falso moralismo, para as farsas instaladas como mundo perfeito.

Como cantou Ney Matogrosso, “não existe pecado do lado de baixo do Equador“. Quanto a quem eu comi, ou não, lamento, vida privada, sem Revista Caras, Edredom, Hugo Gloss ou Interrogatório com Tortura Medieval. Fica combinado, quando eu declarar algo sobre isso, é porque fui submetido a dizer e assinar qualquer declaração, eventualmente lobotomizado. Amores existem para serem vividos, comentar demanda tempo que prefiro dedicar as práticas. Portanto, meu confessionário é outro.

Voltando de um dos últimos ensaios de quadra da Portela, tendo pegado chuva, me veio a mente a Batata Frita de Marechal Hermes. Faz mais de duas décadas, o lugar era conhecido pelo “Cachorro Quente de Marechal”. Fim de noite, era certo uma resenha com essa iguaria do subúrbio, de passagem. O melhor do gênero, do mundo, foi substituído pela Batata Frita. Das vezes que passava beirando a Estação de Trem, me causava um espanto ver as filas quilométricas pela calçada. Já bem tarde, frio, meio de semana, tempo ruim que carioca não gosta, enfim minha chance.

Lá fui eu, iniciado a preços e opções que nunca imaginei. E olha que estive em Lima, numa lanchonete onde é obrigatório se falar “La Papa”, pois o Peru é o país de origem dessa espécie que salvou da fome a Europa e se espalhou pelo mundo inteiro. Mas o que acontece em Marechal Hermes ultrapassa qualquer limite de razoabilidade. Se fosse utilizado o mesmo modelo para as ações do Fome Zero, o assunto já estaria resolvido. Na aplicação dos modelo de negócio da Batata de Marechal há mistérios que o poder público e sua retórica não tem como alcançar. Em lugar das migalhas de reajuste de salário mínimo, chamadas vexaminosamente de aumento – com a picardia de ainda cobrar de quem ganha dois salários o Imposto de Renda – a aplicação de generosas pás de batata e outros elementos que enriquecem o prato. Marechal Hermes é outro mundo.

O bairro já começou dando um banho no projeto defasado e mequetrefe do Minha Casa, Minha Vida. Mais de um século antes, o 1o projeto de habitação popular, que funda o bairro, tira onda, com casas numa área com população humilde morando como se fora nas mansões do Alto da Boa Vista. Ali havia uma ambição latente, por um país de elevados padrões para sua população em geral, que lamentavelmente vemos sucumbir, decaindo para equiparar-se a pobreza reinante dos nossos vizinhos. É preciso assumir, somos ricos, ricos como a Batata de Marechal Hermes.

A fórmula cai no gosto popular por razões simples, você paga três vezes menos e come três vezes mais. Não dá pra acreditar, só indo lá e vendo de forma constrangedora, como as franquias de alimentos nas praças de alimentação dos Shoppings não tem a menor capacidade de competir. É como comparar uma rede de Atacarejo a outra de Supermercados. Esquece, a distância é abissal.

Pergunto eu a você: vai comer quando?