ENTRE A FOME, O ALIMENTO E O VENENO

Esse negócio de Páscoa me obriga a ressignificar o andar dessa carruagem. No domingo, era um montão de gente lambuzada de chocolate. No frigir dos ovos o que se via já não era exatamente a Páscoa e seu simbolismo essencial, mas apenas as embalagens cobrando pelas imagens de grifes – de valores proibitivos ao bolso do trabalhador que ganha salário mínimo, que só é melhor do que o dos chineses – que encobriam as fartas dosagens de parafina cancerígena em lugar do bom e velho cacau amargo raiz.

Há uma campanha nos veículos de comunicação, em tom brincalhão, falando de “doces venenos“. Achei tão simpática quanto a música da Rita Lee, com aquele trecho “venha me beijar, meu doce vampiro“. Não há qualquer romantismo nas brigas envolvendo comida e sua opções. Nascem fanáticos onde menos se espera? Pelo contrário. Eram fanáticos, mas ainda não haviam aderido a causa da saúde e do politicamente correto. Na juventude, ingeriram de tudo, e atualmente, ainda ingerem, mas defendem com fervor novas práticas, que protejam a saúde e a qualidade de vida.

Uma das rotas de ataque a certos alimentos são os chamados “ultraprocessados”, também conhecidos como “refinados”. A maldita industrialização, que retira o homem de perto da natureza e o expõe a todo tipo de adulteração. Desse modo, cabe aos orgãos reguladores mais sérios, tais como o FDA americano, estabelecer as regras que separam um produto integral de um outro refinado. A tradução literal para esse assunto diz que:
“Um grão integral é uma semente que se converte em um grão de milho, trigo, aveia ou outro qualquer que colocamos na mesa.
Ele tem três partes: A camada externa do farelo; o endosperma médio, que compreende a maior parte do grão; e um pequeno embrião. Se esses três componentes existirem em um alimento nas mesmas proporções que no grão original, esse será considerado “grão integral”, de acordo com a Food and Drug Administration (FDA). (Os fabricantes de alimentos podem adicionar os três componentes separadamente aos produtos por motivos de textura, sabor ou outros).”

A imagem que utilizei acima, mais se parece com um corte de carne vermelha – por favor não se assustem os vegetarianos, veganos e outros “anos” – mas é apenas um grão de trigo, submetido a um corte para análise da sua estrutura interna, onde se vê claramente o embrião, bem vermelho no lado esquerdo, que se alimentará do endosperma para se tornar uma planta. A retirada de uma parte do grão, no processo de industrialização altera o produto. Acontece que esse já foi alterado antes…
Não é o objetivo de nossa breve exposição do assunto falar sobre monoculturas, eliminação da biodiversidade das espécies cultivadas, ou chegar até o pão que era comido na ceia dos tempos de Jesus e seus apóstolos. Apenas trazer outras visões sobre o tema. Enquanto os países ricos discutem obesidade, doenças do coração e câncer, trazendo a moda pra cá, com hábitos importados substituindo arroz com feijão e ovo por Méqui Delivery, é preciso também olhar para a Segurança Alimentar sem excluir os lugares onde a fome e a sede persistem, além do envenenamento das fontes básicas da vida: ar, água e solo. Temo dizer que estudos recentes apontam para a qualidade do ar que respiramos como sendo o principal fator potencializador da demência, por exemplo.

Todo esse papo envolvendo as substâncias antixoxidantes, os componentes químicos constitutivos da nossa estrutura biológica, são afetados por algo que vai além do grão que você come.
Portanto, o YouTube com seus vídeos de grande audiência e sugestões de dietas ABCZ, somados a noções de nutrição fundamentadas e recomendações médicas especializadas não vão resolver certos aspectos do problema, quais sejam: a cultura de consumo local do alimento, as restrições econômicas, a situação geopolítica e as guerras, que, só para citar dois exemplos, bloqueiam trigo da Ucrânia e deixam milhões na Faixa de Gaza sem ter o que comer, de uma hora para outra. Tais desequilíbrios são muito mais ameaçadores aos problemas envolvendo alimentos para a população do que o grão integral ou outra coisa dessas que fazem a gente perder a noção do conjunto e ficar no conhecimento ultra-específico sobre o tema.
Pra complicar ainda mais nossa vida, vivemos o boom dos suplementos e os corretivos recomendados por uma medicina corretiva, dessas que funciona como um elixir milagroso. Produtos como Ozempic e similares, com todos os seus respectivos efeitos colaterais, incluindo aí a dependência.
Assunto extenso, voltando as vacas frias, comemos grãos faz uns 50 mil anos, passamos a refinar os mesmos faz 150 anos. Não sabemos onde isso tudo vai parar. Enquanto isso, é bom saber que seu organismo descarta o embrião e o farelo, absorvendo vitaminas, sais minerais, fitonutrientes e gordura boa. Nos EUA, é vendido o grão enriquecido, que recebe uma turbinada de aminoácido, a Tiamina, além de vitaminas B e Ferro. Mas pouco ou nada se faz quanto ao déficit de Potássio e Magnésio, sendo que esse último é muito importante nas funções neurológicas e dos músculos, além de estar presente nos ossos.
A falta de fibras nos alimentos refinados é de fato um aspecto a ser suprido de alguma outra forma, pois é sabido que entupimento de coronárias, depressão, prisão de ventre, diabete tipo 2, câncer no intestino e outros trambolhos vão complicar a vida de qualquer um, jovens inclusive.
Como se tudo isso não bastasse, há os produtos batizados. Nem em lugares onde o controle é alto, você se livrará deles. Confundir um grão integral com algo que está colorido de vermelho ou marrom? Pode ter levado tinta… O percentual de grãos integrais é 100%? Nunca saberemos, só conhecendo a plantação. É provável que essas recomendações em nada ajudem a quem passa fome nas ruas, pega comida nas lixeiras dos grandes centros urbanos, e que isso seja visto no futuro como um preciosismo burguês.

Não está descartada a hipótese de uma era canibal, ou antes dela de carnificinas em torno de fontes de água, ou dos alimentos humanitários que já levaram a morte quem foi atrás dos paraquedas. Não é a primeira vez e não será a última, que assistiremos o Darwinismo literal pela TV. Gosto não se discute.

Dedico esse texto ao Betinho, a quem tentaram apagar a imagem de pioneirismo e se apropriar do legado, só pra ficar bem na foto.