Literatura no Cinema

Foi nesse final de ano, quase na virada que assisti um lindo filme em homenagem ao livro. O nome em português foi “Coração de Tinta” (inkheart). Uma verdadeira aula sobre as metamorfoses e o encantamento pelo qual passam os leitores dedicados a vida entre os livros.

Considero que uma das maiores virtudes do cinema americano é exatamente sua capacidade ficcional. E nesse filme, essa capacidade foi explorada de uma forma das mais inteligentes e lúdicas que já vi a favor de um objeto tão pouco considerado nos tempos das tecnologias e formas audiovisuais. A trama dá uma prova de que os recursos de cinema e televisão podem ser muito proveitosos para dirigir as pessoas a universos de tradição, como é o caso do literário.

Na terminologia adotada por todo o filme, alguns termos me saltaram os olhos. Por exemplo, língua encantada. Um leitor que conta histórias para sua filha de forma tão verdadeira que consegue materializar os elementos e personagens dos livros. Isso é considerado um dom. Linda metáfora. O Nirvana a ser alcançado pelos que almejam ler bem um livro.

Bárbaros capazes de queimar, rasgar e desprezar bibliotecas e livros é uma cena muito forte e remete as inúmeras vezes que isso aconteceu na história humana. Em “O Nome da Rosa” esse fato ganhou mais dramaticidade. A biblioteca de Alexandria talvez tenha sido a maior perda em volume. O nazismo se encarregou de fazer o mesmo.

Os filhos podem herdar de seus pais a “língua encantada”. E foi isso que aconteceu. A filha do protagonista é capaz de leitura com capacidade de materializar. Outros se aproximam dessa aptidão raríssima, mas só o faze pela metade. E isso o enredo explora bem. Personagens que saem do livro, mas que pelas palavras de leitores medianos acabam marcados por pedaços de trechos de livros na pele.

Ao entender o valor da leitura, até os vilões tentam se apropriar do controle sobre essa capacidade. Até que em um dado momento, entra em cena o autor. No caso, o escritor que realizou o livro “inkheart” é localizado para que o manuscrito pudesse ser lido pelo encantamento da língua do leitor.

Nesse ponto a história recebe uma inflexão interessante. O confronto entre o destino definido pelo autor e os personagens que ele criou. Ao fazer isso, deu aos personagens vida própria e percebe que os mesmo podem e querem se rebelar contra um destino pré-determinado. Novos tempos, novos rumos para as histórias. Um autor nunca terá o poder sobre seus personagens eternos. O grande controlador do livro, corre sempre o risco de que o mesmo seja reescrito ao longo de gerações. Isso, quase sempre acontece.

O desafio que se coloca então é reescrever histórias. De um lado, os vilões querendo fazer isso com o uso da força. Desejando viver uma espécie de mais-valia da maldade. Do outro lado a filha de língua encantada e o autor. Ambos trabalhando juntos.

A menina começa lendo o roteiro do autor e quando ele desaparece ele a convida, numa espécie de oficina de literatura. A menina começa a escrever sua própria história e vai pouco a pouco descobrindo sua capacidade de criar histórias. Nesse ponto ela se transforma em algo além da língua encantada. Ela é autora. O personagem é autor. E as histórias se misturam numa colagem que beira uma bricolagem de Maiacovsky, o pós-modernismo e o software livre de que nos falam os que produzem obras colaborativamente.

A posição do autor é portanto objeto de um questionamento sutil e educado, mas antes de mais nada, divertido. É claro que o próprio autor acaba sendo transformado num personagem que é convidado a desaparecer diante da caneta nas mãos da menina. O coração de tinta como título passa então a fazer todo o sentido.

Vladimir Cavalcante – New Executive Officer – AREEVOL

Deixe um comentário