Palco Político da Lama ou Mudança?

Era uma vez o Brasil.

No Nordeste se proliferava a política da exploração da miséria e em especial da fome. Foi na época do coronelismo. Nasceu um livro. Seu autor se chamava Josué de Castro. Ele escreveu então “Geografia da Fome”. Esse livro deveria ser leitura obrigatória nas escolas em que a política de desenvolvimento cidadão substituísse a política de domesticação de pessoas. Resumidamente, o livro alerta sobre como a prática política traz em seu DNA a EXPLORAÇÃO DA TRAGÉDIA.

Seguindo essa tradição, a política no Brasil capitaliza fatos que nos envergonham como nação e como cidadãos. O discurso contra a FOME, só faz sentido num país, paradoxalmente um celeiro de alimentos, e repleto de faméricos. Ou repleto de analfabetos. Ou repleto de doentes. Ou repleto de viciados. Todos quadros trágicos. E é dessa tragédia que se alimenta a política atual. As grandes cenas épicas armadas para obtenção de resultados mediáticos, fazem os representantes do povo aparecer no palco da lama.

Comparando esse quadro com o funcionamento de uma partida de futebol, é possível afirmar que um juiz de futebol que que vira a primeira página de um jornal representa tudo que um torcedor não quer ver. O torcedor quer ver o gol, quer ver o drible, quer ver a jogada do craque, enfim. Quando o juiz aparece demais, é sinal de que extrapolou sua função no jogo. E a torcida não gosta…

O Palco no qual a classe política opera sua audiência tem sido o palco das tragédias monumentais. É preciso deixar a situação chegar a fundo do poço, olhar o rastro de destruição e morte, e finalmente aparecer para desfilar no palco da desgraça da vez. Normalmente pobres. Normalmente morros. Normalmente a parte abandonada ao Deus dará, que servirá de alimento na próxima oportunidade de projetar nomes e rostos.

Sim. Eles aparecerão em cima dos lixões que deslizaram, para fotos e entrevistas para jornais nacionais e internacionais. Eles desejarão manter os grilhões da dependência que alimenta suas urnas. Sua fome e desepero. Sua falta de educação e saúde. Ao contrário dos governantes de uma linhagem nobre, que passam sem ser percebidos, pois conseguiram um nível de qualidade de vida nas sociedades que governaram, eles governam a tragédia. Nero chegou a incendiar uma cidade inteira.

Há os que dentro da política anseiam pelo quanto pior melhor. No caso da violência, ganha-se mais dinheiro com a chamada “expansão do mercado”. Mas o que a população deve decidi por si é quanto a “que mercado deseja expandir”. Me parece que é chegada a hora de expandir o “mercado da cidadania”.

Na história das cidades afetadas por enchentes, temos o caso de Florianópolis. Nessa cidade, se aproveitou um momento de tragédia para criar uma festa que acabou se transformando no maior circuito turístico, no mês de outubro, do país. Diz a história:

Tudo começou com a Oktoberfest de Blumenau, cidade fundada em 1850 no Vale do Rio Itajaí-Açu, com o propósito de levantar o ânimo de seus moradores abalados por duas grandes enchentes em 1983 e 1984. Depois de três edições, a  festa estava consolidada e a partir de 1987 ganhou a simpatia nacional, passando a receber, em média, 750 mil visitantes a cada edição.

As enchentes podem se transformar em uma virada nesse jogo viciado, atualmente estabelecido. O capital político arrecadado com o simples aceite das invasões desordenadas pode ser muito bem substituído por uma ocupação organizada do solo. Temos o privilégio de solos de enorme potencial agrícola, que infelizmente forma transformados em áreas de especulação imobiliária. Temos geografias e biomas em processo de extinção. Temos a Zona da Mata como um território que por lei é defendido de corte da mata, sendo desflorestado em nosso nariz. E a fúria da natureza em marcha mundial. A marcha da natureza parece até a internacional travestida de natureza…

A grande maioria dos líderes de países mundo afora desconhece os três ciclos básicos ao funcionamento dos “sistemas circulatórios” da Terra.  O ciclo da água, da oxigênio e do nitrogênio são essenciais ao desenvolvimento dos ecosistemas complexos e organismos superiores.

No caso específico do ciclo da água, muitos tem observado que o volume de água na atmosfera pode estar relacionado ao aquecimento global e ao processo de degelo das camadas polares. Mais água disponível significa nuvens maiores, do tipo que vem obrigando aviões a desviarem e no lugar das linhas retas, fazerem manobras para contornar o obstáculo, que pela tecnologia aeronáutica atual pode-se dizer intransponível, sob pena de aumento do risco de acidentes. O Air France que ceifou a vida de pessoas saídas do Brasil no centenário da França, denegriu um pouco o brilho da festa que se pretendia entre essas nações irmãs.

Essas massas de água, tem seu comportamento observável em países tropicais. As florestas tropicais são filhas dessas chuvas. E a Serra do Mar é uma extensão que produz uma barreira natural a essas nuvens, sendo inclusive banhadas intensamente por muita água, principalmente durante a estação do verão. Os índices pluviométricos da região são impressionantes. É de se esperar que o aquecimento global aumente o volume de água na média? Talvez. Mesmo que não seja positiva a resposta a essa pergunta, a ocupação de regiões antes florestais por população humana, coloca em risco seus moradores. Quem sobe a Rio – Teresópolis já deve ter visto uma placa enorme de cor vermelha, alertando a população para que não se aproxime ou entre na mata em local de um veio de água. Fala-se da “tromba d’água”, que pode surgir sem dar aviso prévio.

As vítimas, são “engolidas”, como se estivessem numa avalanche. É quase um milagre escapar. Na década de 90 trabalhei em um projeto do Banco Mundial, cujo objetivo era mapear e treinar pessoas para um trabalho no Estado do Rio de Janeiro sobre a questão da “contenção de encostas”. Um termo pomposo para tratar de ocupação urbana de morros por um processo conhecido como favelização institucionalizada do estado.

Com um estado ausente por décadas de uma política pró-ativa de regulação do espaço urbano para fins de um sistema de habitação minimamente digno, assistimos os brasileiros líderes de um país resignado, as mesmas lideranças de oposição que denunciavam essa situação chegarem ao poder e se “acomodarem” no mesmo, ou pior em patamar inferior de ações pela mudança desse estado de coisas.

Que mudanças esperar? Simples assim. O Estado do Rio de Janeiro convive com um dos maiores contingentes de engenheiros do país. Se dos seus mais de 100 mil engenheiros, apenas uns 30% fossem alocados para um sistema de “Força Tarefa” de reeestruturação espacial de cerca de 92 municípios, teríamos melhor sorte nos aspectos meramente construtivos. O PAC é antes de tudo, uma piada de mal gosto, quando pensamos no tamanho dos problemas que arrasta a sociedade versus o magnitude das soluções oferecidas pelos governos dos últimos 50 anos.

No estudo que serviu de treinamento para técnicos de geologia, medicina social, geógrafos, engenheiros, entre outros, a cidade referência escolhida foi Hong-Kong. Topografia e solo semelhante ao do Rio de Janeiro. População com renda per capta maior, mas com problemas de ocupação em áreas de risco semelhantes e algumas mortes decorrentes de deslizamentos. O governo por lá, adotou a prática nada simpática de “tolerância zero” quanto a ocupações. Aqui, tivemos prefeitos em quem se depositou até alguma confiança dizendo que habitação era “problema do governo federal”.

Esse empurra-empurra entre as instâncias federal, estadual e municipal representou quase três décadas de inércia que produziram um desenvolvimento desordenado do espaço urbano e consequências que vão da violência, educação, saúde, transporte e habitação em níveis incompatíveis com a riqueza ostentada pelo Estado do Rio de Janeiro. Temos quase 90% da produção de petróleo do país. E para quê? Para queimar nas refinarias em Duque de Caxias, poluindo o ar irrespirável de bairros como Jardim Primavera? Essa riqueza vem sendo drenada para o vazio do pouco ou quase nada, que a população assiste pela TV, em peças que posso chamar não de projeto, mas de marketing político, associadas apenas ao interesse eleitoral. O fulcro do problema não tem sido atacado.

Angra dos Reis em pleno Ano Novo, Niterói em meio ao lixo e deslizamentos decorrentes de aterros sanitários e a região Serrana, figurinha repetida nessa onda serial de desastres, estão concentradas em um mesmo estado, cujo nome já anuncia. O Rio. Está no próprio nome. E o mês, bem o mês é o de Janeiro. É por essas época que a tragédia se repete. Mas para muitos, parece a chance de aparecer na mídia. Não importa se com uma marca negativa nas costas. O governo de Jorge Mário já colocou seu nome na história da cidade de Teresópolis. Como médico, ele sairá desse episódio como o Prefeito da maior tragédia, com o maior número de mortos dos mais de cem anos de existência dessa cidade.

Esse ano , em especial acompanhei a situação na cidade por todo o mês de dezembro. Chuvas de uma amplitude (24 horas por dia initerruptas) e intensidade (as ruas viraram corredores de água) por quase todo o período de Natal até o Ano Novo. Confesso que fiquei muito impressionado com o volume de água em dezembro. Esse encharcamento dos solos, deixa a estrutura progressivamente mais e mais vulnerável, com a incidência de mais chuvas. E foi o que aconteceu nesse mês de janeiro.

Muito mais chuva. E todos, literalmente despreparados e principalmente, de férias. Isso inclui o Governador do Estado. Num lugar sério, as férias teriam sido interrompidas. Mas o Rio de Janeiro admite a comemoração da tragédia do ano passado com sua reedição esse ano. Mudam os atores e o cenário. Permanece o roteiro básico. Esse sistema é tão rentável quanto a transposição do Rio São Francisco, nossa saudosa SUDENE, que Deus a tenha, responsável por alguns dos maiores desfalques financeiros dos cofres públicos do país.

Há quem diga que Teresópolis lidera o ranking de cidades que maior crescimento de favelas teve na última década. Isso por si já é grave, para uma cidade cuja identidade remete a uma espécie de “Santuário da Serra”. Mas associar esse dado aos índices pluviométricos, e ao tipo de solo de algumas localidades e distritos da região, torna essa equação quase insolúvel. Digo, quase insolúvel, por ter essa semana encontrado algumas matérias que me fizeram resgatar a criatividade na construção de lugares.

Há lugares que estão se reinventando. Acredito que Teresópolis, dentro desse mergulho ao fundo do poço, possa, com sua pujança aproveitar esse momento para se reinventar. E isso em muitos aspectos. Quando ouço autoridades e jornalistas pedirem donativos que incluem água, fico estupefato. A cidade possui dezenas de fontes de água de altíssima qualidade a disposição da população. A cidade é em tese AUTOSUFICIENTE em água, mas lamentavelmente, pela ausência de uma política de sustentabilidade dos seus recursos aquíferos, vive o paradoxo de ter sua população ser vitmizada por “Cabeças D´água”.

Em diversos lugares do planeta, onde a água é escassa, existem sistemas de coleta de água utilizando os telhados das casas ou mesmo dutos, capazes de canalizar para aproveitamento esse recurso cada vez mais importante para a humanidade. Já temos na África tribos se matando na competição por água. O documentário “When the Water’s Ends” por Evan Abramson apresenta o tema com propriedade. Estamos entrando numa “Era dos Conflitos Climáticos” e sem o preparo da população estaremos em maus lençóis. Se na África há falta de água, ou em Dubai, ou no Saara, é possível entender. Mas em Teresópolis? Vejo que ao rever as declarações no calor do momento, feitas de modo automático e sem horizonte de visão da cidade que os cidadãos desejam construir, perdemos OPORTUNIDADES CRIATIVAS, escondidas dentro do espetáculo da tragédia.

Dentro de um projeto de ocupação urbana, é possível imaginar casas de pessoas simples, incentivadas a ser “produtoras de um sistema exportador de água”. Vemos Portugal adotando energia eólica limpa, em maior intensidade que a França. Mas a França detêm um vetor de energia nuclear que representa uma esfera de interesses. Talvez para Portugal seja mais fácil. Fontes públicas ainda existem em Teresópolis. As da Europa se tornaram objetos de Museu. A cidade além de se reinventar pode aproveitar para se redescobrir.

Uma segunda iniciativa que pode perfeitamente ser adotada de imediato é a pura e simples aplicação de leis ambientais com o rigor que o município pode exercer com aparato legal. Fiquei impressionado com o volume de representantes do ministério público e juízes para essa emergência. O que me decepcionou foi que essa mobilização era para despachar óbitos.

A agilidade na aplicação da lei deve nos colocar em uma posição de primazia nesse setor. A cidade possui uma tradição de ecologistas e de uma população que é simpática a natureza, amiga da natureza. Mas nenhum habitante é obrigado a conhecer o Parque Nacional da Serra do Orgãos. Por lei, todos os colégios deveriam levar seus alunos a visitar esse lugar, para entender as condições edafo-eco-climáticas de sua região e suas consequências para cohabitar nesse território.

Ainda que algumas tragédias sejam da ordem do imponderável, há hoje um sem número de instrumentos que podem ser utilizados para minimizar suas perdas. Sabemos dos avanços que os sistemas meteorológicos vem conhecendo nesta última década, por especial desenvolvimento da capacidade de processamento dos computadores e formulações no campo da matemática aplicada. Uma cidade como Teresópolis, conhecida por uma instabilidade climática que obriga sua população a sair de camiseta e levar casaco, capa e guarda-chuva, numa espécie de “quatro-estações” em um único dia é digna de se tornar uma referência.

Portanto a segunda proposta, por mais ambiciosa que pareça é de que a cidade possua um sistema LOCAL de MONITORAMENTO CLIMATOLÓGICO, acompanhado do que de melhor houver de recursos científicos e tecnológicos no mundo, e desse modo se tornar um centro de referência nesse campo de pesquisa. Essa seria portanto mais uma OPORTUNIDADE CRIATIVA, a ser desenvolvida, apesar dessa tragédia.

Ao final de uma década estaríamos habilitados a fornecer esse know-how para outras cidades do Brasil, incluída aí a cidade do Rio de Janeiro e outros municípios, e atendendo a população com informações decisivas a sua segurança e vida. Isso seria dar a volta por cima, como fez Florianópolis com seu circuito de festas.

Acoplado a esse sistema, me lembrei da Segunda Guerra Mundial. Os aviões com suas bombas. Ataques inevitáveis a uma população civil e indefesa. Os alarmes permitiam que num rápido movimento as pessoas pudessem se defender. Localizar os pontos de observação na cidade, montar esse sistema de defesa preventiva, em níveis planejáveis, táticos ou de evacuação imediata, investe a população de instrumentos de defesa, taias quais os que deveriam existir em cidades como Angra do Reis, pelas razões de proximidade as Usinas de Energia Nuclear. Mais uma vez, a utilização de recursos de ponta, adaptando equipamentos de alarme para uso no anúncio de calamidades públicas. Considerando o cenário, nada otimista, onde situações como essa voltarão a acontecer, o remédio é pelo menos salvar as vidas humanas e providenciar seguro para as perdas patrimoniais. Essa última uma providência obrigatória para se morar em lugar de risco. O repasse e socialização de prejuízos pessoais por quem muitas vezes escolhe áreas de risco para construir é no mínimo questionável.

Com algumas soluções originais, para quebrar o ciclo vicioso, de uma política viciada numa fórmula que pode dar certo para votos, mas está dando errado para poupar o dinheiro público e salvar vidas…

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