Respeitável Dinheiro Público

Acordei essa manhã dentro de uma trama de ficção. Mas parando melhor para olhar as cenas, tudo era muito real. O velho amigo, professor de Física Nuclear, reconhecido fora do Brasil me dizia que a Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia acabara de afirmar pela televisão que uma vultosa verba estava sendo destinada aos trabalhos de pesquisa no Rio de Janeiro. Mas era mentira. As verbas eram apenas anunciadas como uma forma nociva de marketing político dos que estavam na época com as mãos na máquina estatal. O dinheiro mesmo, a mufunfa, a grana, bem essa ficava apenas na rubrica. O governo fingia que liberava, e as instituições fingiam que recebiam.

Parte de todos os acontecimentos econômicos que nos rodeiam segue esse mesmo roteiro. São anunciadas obras, pontes, escolas, remédios, alimentos e tantas outras coisas, para ao  fim da linha se transformar em um sonho vendido sem entregador. E dessa sucessiva cadeia de mentiras, vive a política e seus beneficiários. A grande maioria dos políticos eleitos, só o fazem sustentados nessa verdadeira pirâmide.

Enquanto na religião encontramos os líderes prometendo o paraíso para logo depois que a vida se acabar, na política convivemos com os mais apressadinhos. Esperar a morte para quê, se podemos prometer tudinho para os próximos quatro anos de mandato. E assim vamos assistindo o endividamento desses bons mentirosos, que pouco a pouco vão perdendo a credibilidade perante a população, mesmo aquela mais inocente.

Mas quem se elegerá sem prometer o que não se pode cumprir? Quem pagará a dívida herdada por essa sucessão de mentiras administrativas e dos modelos fabricados pelos planos que dominaram quase todo o funcionamento da vida pública do século XX?

Quero voltar as contas públicas. Olhando para o Obama, já em plena campanha para reeleição, vemos o presidente da nação mais poderosa do mundo, desenhando sua fantasia de governo para um assunto espinhoso: o calote. Sim. Sua reeleição depende essencialmente de ter a habilidade para persuadir a opinião pública e os congressistas americanos de que é necessário ampliar as bases de endividamento do seu governo.

Ou seja, ele quer mais crédito para continuar gastando além da sua capacidade de pagamento atual. Manter benefícios sociais exige a existência de recursos endereçados para essa finalidade. O chamado “Welfare State”, uma espécie de socialismo do capitalismo, foi o modo como a sociedade americana garantiu conquistas importantes para sua sociedade, protegendo os mais necessitados. O problema é que a bondade é uma prática politicamente correta que não está isenta de pagar a conta. Alguém sempre paga a conta.

O que está em jogo nesse momento é a reeleição de Obama e outros candidatos a reeleição  por todo o mundo, associada a uma questão globalizada e localizada. A Grécia é um exemplo mais recente das perdas para a população de um sistema economicamente desequilibrado. Dívidas contraídas, ausência de produção de riqueza, juros que não cabiam no bolso. Resultado é que o problema de curto prazo foi empurrado com a barriga até esse ano. Assistimos a população local revoltada, quebrando tudo pelas ruas em manifestações contra a injustiça. Ou melhor, a irresponsabilidade de quem empurrou para debaixo do tapete o assunto crucial, anos antes. Quem pagará a conta da distribuição de benefícios e quem se apropriará das riquezas?

Numa economia global interligada, a falência de uma nação endividada afeta todos os seus credores. Trata-se de uma balança com centenas de “pratos”, difícil até de imaginar. Mas quando um país deixa de pagar suas dívidas aos países que lhe emprestaram dinheiro, ou aos bancos privados desses países, suas economias e rentabilidades também são afetadas. Essa metralhadora giratória global faz com que os mais espertos fujam para escapar de levar uma dessas “balas perdidas”. Mas isso não é possível quando a reação em cadeia contamina todo o portfólio de investimentos do agiota internacional. Quem empresta dinheiro sempre corre riscos.

Os governos de todo mundo vivem esse dilema. Se endividar para crescer e reelegerem os governantes da máquina, oferecendo o máximo de benefícios para a população ou se locupletando com o dinheiro público. O problema é que diferentemente do paraíso prometido em algumas religões, os recursos não são fabricados pela imaginação ou pelo espírito. Ou será que são? Parece que sim. A política ganhou ares de religião. Há políticos investidos da vontade de Deus, se arvorando a um poder de natureza divina mesmo. Há aqueles que garantem ter absolutamente tudo sob controle. E nas campanhas, garantem que alcançarão metas irrealizáveis. Ou alguém se esqueceu da promessa ridícula da então candidata Dilma certa vez de que “todos os brasileiros tem o direito a ser classe A”. É provável que os grecos também. Mas não é bem isso que estamos assistindo.

A gravidade na administração de dívidas não é assunto recente. Após a trágica morte de Tancredo Neves, o então presidente Sarney e seu ministro Dilson Funaro colocaram em prática um plano liderado pelo economista João Sayad e “simpatizantes”. Ele se chamava Plano Cruzado e resultou numa ação de congelamento de salários, preços, entre outras medidas. Em seu governo, o gatilho não foi suficiente para resolver os problemas do Brasil com o sistema financeiro internacional e o acirramento desse conflito produziu uma moratória. Termo até então desconhecido da população, significava em linguagem popular o chamado “devo não nego, pago quando puder”. O Brasil não chegou a ser tão original em sua solução, uma vez que países com hiperinflação já haviam adotado variações desse mesmo tema, como por exemplo no caso do Plano Austral. Se atribui a ausência de controle dos gastos públicos e aos interesses eleitorias o fracasso do Plano Cruzado. O Plano Cruzado II e a moratória já faziam parte do momento triunfalista do político que conquista irresponsável e demagogicamente a unanimidade popular. Esse ciclo se repete até hoje.

A moratória de ontem é o calote de hoje. Na linguagem culta do Direito Internacional, um país pode se declarar incapaz de pagar suas dívidas com credores internacionais. No caso do Brasil, as bandeiras ideologicamentes hasteadas contra o sistema capitalista internacional viviam pleiteando o não pagamento da dívida externa e a não submissão ao Fundo Monetário Internacional, que acabou por se notabilizar mais pelo envolvimento de um de seus diretores num escândalo sexual com uma camareira. De 1987 até 2011, as páginas dos jornais mudaram muito… E o Brasil foi adequadamente domesticado e integrado ao sistema financeiro internacional privado como a economia de agiotagem mais rentável do mundo. Coube a FHC renegociar a dívida com os credores e daí em diante o continuísmo sem questionamentos…

E foi assim que países como México, Brasil, Argentina e Rússia fizeram parte do grupo de caloteiros daqueles anos. Essas nações foram tratadas como “leprosas”, e isoladas em “quarentenas”, submetidas a um “amargo remédio”. Esse caloteiros não aconteceram apenas no âmbito nacional, mas encontraram seus pares no poder municipal de uma bela cidade: O Rio de Janeiro. Em 1988 o então Prefeito Saturnino Braga anunciou a falência do município. Segundo Saturnino:

“Eu nunca neguei a responsabilidade na falência, embora eu soubesse que ela estava decretada há muito tempo. Quando houve a criação do Município do Rio de Janeiro, ele ficou só com as receitas municipais para sustentar uma rede escolar que era a maior do país e  uma rede hospitalar gigantesca, e perdeu as receitas que hoje Brasília tem… O Rio de Janeiro ficou inviável naquele momento. O primeiro prefeito nomeado (Marcos Tamoio, no fim da década de 1970) botou a boca no trombone, ele avisou que a cidade precisava de compensações, compensações essas que foram prometidas, mas não foram dadas. O abacaxi caiu na minha mão, paciência.”

O que ele quis dizer é que quando um administrador vai gerir uma organização deve cuidar para manter equilibradas as receitas com as depesas. Qualquer dona de casa sabe disso. Mas como age um político em busca de se eleger? Ele promete antes, sem considerar o quadro as vezes desesperador das contas públicas. Ele acredita que o ônus da realidade não recairá sobre sua gestão, ou que alguém aparecerá para socorrer sua sistuação de apuro. Quem socorrerá Obama? Os republicanos do Bush, loucos para retomarem o poder? Claro que não. Querem ver o circo pegar fogo, instaurar uma crise econômica, obrigar Obama a se comprometer com o que possa pagar e não assinar um cheque de crédito que o permita reeleição. Se a crise o atingir antes, melhor para os republicanos nas urnas.

O santo que “baixou” em Saturnino Braga no ano de 1988 parece ter encontrado um outro “cavalo”. É o Prefeito atual da cidade, Eduardo Paes. Segundo seu adversário político, Rodrigo Maia, “a desesperada intenção do prefeito Eduardo Paes de tentar vender a sede administrativa da Prefeitura do Rio e mais doze imóveis para saldar uma dívida de 1 bilhão de reais para a Funprevi, Fundo de Aposentadoria e Pensões dos servidores. A intenção de alienar o patrimônio para quitar débitos é inédita. Na declaração tácita da falência da cidade, Eduardo Paes copia Saturnino Braga que jogou a toalha, início de 88, ano final de sua administração”. Contas públicas são um exercício de ficção. A população cada vez mais se depara com escândalos em jornais do mal uso do dinheiro. As promessas custam mais caro do que as realizacões, pois vender o sonho na forma de propaganda política ainda é permitido por lei e o marketing é mais fácil de administrar do que a realidade e a produção de resultados.

No caso da Prefeitura do Rio de Janeiro, as aposentadorias e outros benefícios como financiamento de casa própria e auxílio funeral estariam comprometidos com a insolvência da Previdência e o buraco de 1 BILHÃO de reais do Tesouro Municipal com a Previdência. Para pagar a conta, o Prefeito chegou a cogitar a venda do “Piranhão”, prédio sede da Prefeitura e de toda a bagunça pública carioca. O prédio da Prefeitura de Teresópolis tem valor menor, mas o lugar onde foi construído é uma praça e acaba de ser loteado para a construção de instalações para o poder judiciário. O déficit previsto para 2059 da Prefeitura alcançaria 59 bilhões de reais! Alguns prefeitos gastam para os próximos pagarem a conta.

Os dados de Teresópolis sobre contas devidas e a receber são irrisórios perto da calamidade em curso no município do Rio de Janeiro. Qualquer executivo do poder público hoje pode endividar um município, enriquecer com as comissões e deixar o pepino para seus sucessores. Noticiado recentemente a correlação de um milhão de reais em caixa, para vinte cinco milhões de reais em dívidas ao chegar ao cargo como Prefeito interino o vereador Arlei. Malabarismos de circo serão necessários, mas a primeira medida, adivinhem: calote. Nesse caso ganhou o nome de congelamento das ações de pagamento. Só assim para conseguir rodar a folha de pagamento de um município pobre e mal administrado. As finanças fantasiosas que elegem não combinam com a dura realidade de economias que não produzem o volume de riquezas que desejam gastar.

Assistimos pela televisão a situação agonizante de países como Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda e Itália na Europa e pasmem: Os Estados Unidos da América! Num troca-troca muito louco, o Brasil é um dos credores dos EUA. Isso significa que se a maior potência americana dá o calote, o Brasil perde dinheiro. Sua bolsa de apostas, por mais diversificada que esteja vai se proteger aonde? Em Marte? A China talvez possa ser considerada um outro planeta. Mas um “planeta” bastante dependente do mundo inteiro. O regime escravagista produz para o mundo da forma mais barata. Mas seu povo não tem capacidade de acesso ao consumo em níveis que abarquem a produção internamente. Isso não seria uma solução. Abarrotar o mercado interno chinês com a oferta internacional de uma crise mundial vem sendo um caminho anunciado pelos que acreditam nas economias emergentes e seu poder de consumo. Caso do Mantega quando fala do Brasil. Temos válvulas de escape para os calotes, para a produção, para a corrupção, enfim para tudo.

Essa história toda me faz lembrar de um jogador numa “sinuca de bico”. Olha por um lado, muda de posição na mesa, troca de taco, gira, gira, pensa e no final, sabe que tem que jogar para algum lugar. Mesmo que a partida esteja perdida. A prática política vem se aperfeiçoando em fabricar os melhores mágicos, ilusionistas do circus mundi. Sempre alegres e com os bolsos cheios, do dinheiro público.

Falta apenas agora, chamar o apresentador do circo nosso de cada dia para que ele diga: “Respeitável Dinheiro Público!, com vocês, eles!” …

E assim continuamos hipnotizados, votando na eterna ilusão, no lugar de enfrentar com mais coragem as feridas que se espalham por toda parte. O sistema midiático tem um papel decisivo na substituição do estado de transe coletivo pela atitude de responsabilidade compartilhada. Por uma política de menos fisiologismo, demagogia e propaganda enganosa. Está na hora do cidadão saber de fato o que acontece e exercer diretamente seu poder. Pela criminalização da promessa de campanha e pela apresentação da situação caótica dos governos desgovernados.

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