À ESPERA DE UM MILAGRE

O filme “À Espera de Um Milagre (1999)” foi um dos poucos que não assisti no cinema. A carga mística do personagem curandeiro e vítima da (in)justiça, numa acusação decorrente do preconceito racial, frente ao assassinato de duas jovens, cria o apelo dramático para a manifestação do sobrenatural no interior de uma penitenciária. Quem puder assista, onde tem Tom Hanks há um bônus, mesmo se o diretor Frank Darabont não tenha agradado a crítica. O conto de Stephen King pode também ser uma opção aos que preferem ler.

O milagre na Zona Oeste que narrarei, começa na Vila Vintém, mais especificamente na rua Mesquita. Beirando a linha do trem, essa faixa de terra inicialmente pertencente ao Exército, se tornou área de ocupação, pelo baixo valor comercial de suas terras. Era o caminho mais rápido para a Estação de trem, escolhida pelo vovô, nos tempos de portas abertas pra refrescar, seguindo de terno até o Ministério da Agricultura. Creio que o ateísmo é uma forma de religião. Na natureza existe a matéria e a anti-matéria, num jogo dialético e de infinitas possibilidades. Nem todos acreditam em milagres, mas os moradores desse lugar aprenderam a sonhar, sem água, luz e saneamento básico. Pode ser que o sonho seja a semente de alguns milagres, fruto de uma conversa subconsciente com um ente divino.

No terreno ao lado da quadra da Escola de Samba, a irmã de minha avó Maria das Dores, a Glória, conhecida como Goinha. Visitava sua casa e aos finais de semana, aquele batuque que não parava, que aos ouvidos de alguém com cinco a seis anos de idade, parece ser muito mais alto do que para um adulto.

De orientação evangélica, frequentadora assídua de uma modesta igreja na franja da Vila Vintém, Goinha não só acreditava em milagres, mas se dedicou a prática da fé por alguns. Acabei sendo beneficiário direto de sua fé. Quando internado em fase terminal com hepatite infecciosa aos 13 anos de idade, era ela quem me levava água benta e chá de picão para o hospital onde ficavam internados todos os pacientes contaminados por uma doença de altamente contagiosa. Do outro lado desse tratamento, a mesa de Cosme Damião, com seus suspiros, aliados da geléia de mocotó colombo, gelatina e goiabada peixe. A fé em seu espectro sincretista, aliada a um bom meio de campo da medicina foram então o “milagre” que me salvou da morte precoce, no Jardim América, onde muitos outros não tiveram a mesma sorte.

Certa vez na vida, decidi explicar matematicamente o significado da palavra milagre. Resumindo, milagre é um acontecimento de probabilidade igual ou quase igual a zero. Era muito provável que eu morresse naquele hospital? O mais amarelo dos pacientes, cujo o apelido era canarinho, estava entre os candidatos a embarcar pra debaixo de sete palmos. Foram as forças conjugadas de muitas vertentes e vetores que, aliadas a uma disciplina rígida que me salvaram daquela. Não sem antes ganhar 10 kilos em 30 dias, passar 6 meses após a alta sob restrições a alimentos não benéficos ao fígado e um ano sem poder fazer qualquer tipo de atividade física. Para um garoto que jogava 6 horas de futebol e volei por dia, foi equivalente a morte de um pedaço da minha natureza. O sonho de jogar naquele ano pelo melhor time de Sobradinho, ao voltar do Rio para Brasília, foi por água abaixo. A camisa vermelha e branca, para a qual eu já havia sido pré-selecionado, evaporou-se, e com ela um sonho.

Décadas mais tarde, reencontro a Unidos de Padre Miguel na Sapucaí. Foi um carnaval impecável, conduzido por um ex-funcionário da Fábrica de Tecidos Bangu, onde foi entrevistado, numa mesa de Botequim, agora Shopping Bangu. Ninguém tinha respostas claras para as razões que levaram a agremiação a perder a disputa. Talvez o regulamento, ainda defasado de quesitos da dimensão intangível. Aliás, isso vem acontecendo cada vez mais em competições, métricas em lugar dos elementos qualitativos. Uma excelente exceção merece ser citada, especialmente para os pequenos aprendizes, um pouco obcecados pelos cronômetros e milímetros. É que nem sempre o tamanho define o alcance do prazer, do êxtase, do gozo. Outra hora explico melhor, mas foi a patinação artística no gelo que resgatou a beleza e graciosidade dos movimentos, em detrimento ao número de piruetas ou giros sobre o próprio corpo, como item a ser usado pelo júri.

Todo regulamento é passível de mudança, seja numa pista de gelo de uma Olimpíada de Inverno, seja na Passarela do Samba. E nesse caso não é preciso apelar para milagres, mas apenas para os que tomam decisões sobre o tema. Não se iludam com a falsa ideia de que o mundo do samba é conservador, é mentira. Já vimos uma penca de mudanças nesta última década, algumas inclusive envolvendo viradas de mesa, incluso a última tentativa desse ano de 2024.

A UPM estava afinal esperando um milagre?  Pela definição adotada aqui, evidentemente que não. Ser campeã era muito mais provável, pelo número de vezes em que apareceu de forma consistente, pelo menos nos últimos cinco anos em vias de levantar o caneco. O samba se tornou uma espécie de profecia que se auto-cumpre, como se numa espécie de acordo coletivo as forças sagradas. A ver, “meu boi vermelho, o milagreiro vem, traz o milagre pra Vila Vintém, de toda maneira na quarta-feira, que os anjos digam amém“, dá a confiança para que a comunidade exija o resultado positivo de sua luta e de seu longo trabalho, tantas e tantas vezes menosprezado.

Não por acaso, obras de saneamento e asfalto liso vão chegando pouco a pouco nesse lugar onde a memória, os batuques e os louvores se misturam.