A Tragédia das Cidades-Mundo

Desejei escrever sobre “Cidades”, a partir de inúmeras referências. Algumas pela convivência, noutras por notícias pessoais de seus moradores, numa busca da ecologia humana dos lugares. Nunca esquecendo homenagear os Geógrafos, em especial os de pensamento crítico como Milton Santos. Isso se dará por capítulos, não necessariamente técnicos. Isso por considerar a própria incapacidade de solução de problemas pelo meio exclusivamente técnico… Apelo portanto para os recursos das artes, inclusive.

Na literatura, não poderia dispensar um ensaio do trabalho de Italo Calvino, “Cidades Invisíveis”. Uma abordagem de maior neutralidade para tornar a visão menos áspera. Haveria de incluir também um breve texto sobre a “Cidade dos Sonhos”, belo filme de um cineasta que escapou da censura ao seu trabalho publicando o material de um programa de TV na internet. Um cineasta chamado David Lynch. Maestral, criticou um sistema aparentemente perfeito, numa cidade onde todos são personagens.

Mas ao articular o lugar onde moro, sua tragédia anunciada, as tragédias banalizadas e a pílula dourada de governantes que insistem em vender um modelo que exclui o ser humano do centro da geografia, pensei nos 100 bilhões de dólares previstos para investimentos na cidade do Rio de Janeiro e as mesmas promessas. Sabemos que o capital mais importante para a representação política de massas é a promessa. É com ela que os profissionais do ramo arrastam votos que os viabilizam como personagens de um mundo cada vez mais estranho.

Estamos aqui, mergulhados em dois eixos de promessas. De um lado, garantias de que o ano de 2014 e 2016 trarão para a população da cidade do Rio de Janeiro o tão sonhado paraíso para o cidadão. Menos de uma hora e meia, na cidade de Teresópolis, promessas sobre o bem que o investimento de 400 milhões na região trarão para a cidade afetada e com pelo menos três novos cemitérios a céu aberto dentro da cidade. Tive que recorrer a um contraste entre uma cidade muito citada como “exemplo que deu certo”. A cidade escolhida foi Barcelona.

Com relação ao sucesso “incontestável” de sua revitalização não preciso me referir. O discurso mundial faz sua exaltação de modo unânime. Isso inclui boa parte dos realizadores do sistema de investimentos e produção criada em torno desse modelo. Desse modo, as Olimpíadas, associadas a investimentos em equipamentos esportivos de altíssimo custo e toda uma nova infraestrutura para mobilidade das pessoas, instituindo um paralelismo entre esses fatores e a potencialização do turismo, parece ser inexorável. Então minha energia se dispensa desse esforço.

Estarei contribuindo mais para apontar a obra “Biutiful” de Alejandro González Iñárritu. O autor de boas tragédias tem em sua coleção de filmes, “Amores Brutos”, “21 Gramas” e “Babel”, este último mais conhecido pela participação de Brad Pitt. A cidade de Barcelona, pintada e decorada por Iñárritu, definitivamente não é aquela que vemos nas propagandas internacionais para vender soluções parecidas para o sonho de viver bem de todos os cidadãos do planeta.

Iñárritu é na minha opinião um autor bastante comprometido com o gênero da tragédia, enquanto arte. Isso nos ajuda a entender a tragédia do cotidiano. Há notícias de filmes que tocaram mais fundo num dos temas do roteiro de “Bitutiful”.

Orçamentos e notoriedades a menos, dois deles me comoveram. Num deles, uma história de amor, de um atleta que atravessa do oriente até o canal da Mancha para encontrar a mulher amada, aprendendo a nadar na França, em busca desse objetivo. Noutro, no caso um documentário, algumas famílias imigrantes são acompanhadas por uma ONG ao longo de seu “primeiro dia” recebidos pelo serviço de assistência social francês. O quadro mundial é dos mais graves para com estrangeiros e essa bomba relógio pode explodir sob forma de intolerância endêmica muito brevemente. As cidades e o direito internacional não estão preparadas para novos cenários, descritos no cinema.

Para executar esse propósito, não poderia escolher outro ator para protagonista de sua história na cidade Catalã, que não Javier Bardem. Esse último, já traz dentro de sua própria folha curricular a tragédia mais radical da vida humana: a morte. Antes de “Biutiful”, Bardem teve atuação magistral em “Mar Adentro”, e seus dilemas com o fim da vida. É claro que essa experiência foi bem aproveitada para a composição do personagem realizado em “Biutiful”, um paciente de câncer de próstata, com dois meses de vida para curtir os filhos e se despedir do mundo nada lúdico em que vive seus dramas.

E esses dramas, acontecem numa Barcelona “real”. Uma cidade impregnada de dilemas de fundo, presentes por conta das interconexões globalizadas que Iñárritu explora como ninguém. Esse pai, representa uma espécie de “roteador” entre as múltiplas dimensões de contradições que habitam Barcelona, ou qualquer grande metrópole no mundo. É ele que articula a população senegalesa nas ruas, com seus “paraquedas”, como os camelôs do centro do Rio, para venda de produtos chineses, e que dentro destas margens consentidas estão impedidas de vender drogas, mas vendem… É claro que com a conivência de uma polícia corrupta, ou melhor, comissionada.

Mas para que os negros das ruas de Barcelona, quase todos na clandestinidade, possam vender seus produtos, alguém precisa lhes oferecer competitividade. E é aí que entram em cena os chineses. Com sua produção claramente precarizada, mostrada nua e crua. Essas pessoas também fazem parte da geografia humana do filme sobre este lugar aparentemente tão bonito e turístico, que usaremos como referência para espelhar as “melhorias” em cidades como o Rio de Janeiro. Pobres cidadãos do mundo.

A exportação de mão de obra escrava, chineses acomodados como animais em galpões, encaminhados a obras de construção civil, sem qualquer qualificação e direitos, são de deixar qualquer um representante dos direitos dos trabalhadores de cabelos arrepiados. O chinês definitivamente não leva uma vida fácil, nem na China escravocrata-capitalista nem em lugar nenhum do mundo. Infelizmente, no lugar de ganho de consciência sobre os limites da exploração, o ser humano chinês introjetou uma condição sub-humana de vida, acatando toda a precariedade imposta pelos seus irmãos-patrões de mesmo sangue. É claro que me lembrei da Guerra do Ópio, onde 3 em cada 10 chineses eram viciados e condenados a morte pelos interesses britânicos de dominação. É difícil dizer onde vamos chegar por esse caminho. A revolução cultural chinesa foi sob muitos aspectos uma outra tragédia, mas resgatou muitos valores que a nação chinesa havia perdido por conta de uma sucessão de domínios e explorações.

Vemos hoje, os EUA e a China em negociações diante do que se chama “Guerra do Câmbio”. Mas por detrás dessa guerra, há toda a força de investimento capitalista americano, que transferiu suas plantas de produção e passou a carimbar seus produtos como “Made in China”. Essa verdadeira relação simbiótica vem produzindo seus efeitos previsíveis. Sofrimento no “Faroeste Capital”, a favor de uma competitvidade que conduz o mundo a limites de produtividade baseados essencialmente em precarização do trabalho e escravidão. Pode-se dizer sem medo de errar que os novos cativeiros do planeta são áreas de “extrativismo” predatório do sistema de produção globalizado.

Há entre eles, os especializados em “extrativismo” predatório humano, noutras em “extrativismo” predatório de recursos naturais, como é o caso do Brasil. As máquinas de produção mundiais, precisam da intensificação desses ritmos, para se perpetuarem e aos seus lucros extrativistas. A questão é que não há como dar continuidade a isso, sem destruir o melhor que existe em nossas civilizações, o melhor que existe para além das civilizações, considerando aqui um aspecto menos antroprocêntrico da vida na terra, e o melhor que existe no ser humano enquanto indivíduo, cidadão e ser gregário tipicamente inventado pelo advento das cidades e democracias.

Creio que o filme de Iñárritu deixa seu recado na cena tórrida da praia e das almas penadas. A espiritualidade mediúnica de um homem ao seu modo santo num mundo repleto de angústias e sofrimentos humanos traçam o calvário de um penitente, condenado a morte, mas provido de valores que humanizam uma geografia quase estéril, movida pelo poder do dinheiro, quase que de modo absoluto. Barcelona é cinza e repleta de ruídos que levam o cineasta para próximo do último filme de Godard. Repleto de experimentações acústicas, melhor perceptíveis em salas de exibição de cinema de qualidade. Há muita arte e simbolismo no melancólico percurso narrativo desse filme, muito triste.

Ao pensar Barcelona pelos seus atores e atmosfera de cidades globalizadas, me pergunto sobre se “as cidades somos nós”, ou simplesmente “no que nos transformamos” em cidades-mundo. O cidadão como aparelho, ou o aparelhamento do cidadão. Uma obra de arte não é passível de traduções, mas essa pode ajudar a construção de reflexões críticas que afetem a profundidade não apenas dos projetos de urbanismo e arquitetura, mas a uma visão das complexidades e fluxos humanos que acabam por constituir as dinâmicas entre povos em seus movimentos migratórios pela sobrevivência e grandes dilemas da paisagem humana ao redor de um planeta com 7 bilhões de pessoas a beira da banalização da neo-barbárie e seus belos elefantes brancos, bezerros de ouro e cidades-paraíso.

Vale a pena repetir, as cidades são as pessoas. E dentro de cada pessoa, moram quase sempre mais de uma cidade. O cidadão do mundo vaga nômade, como o índio em território transcontinental vilipendiado pelas regras locais, quase sempre hostis aos estrangeiros. E é dentro desse paradoxo que desejamos praticar turismo, promover a união dos povos e respeitar as diferenças…

Ou investimos na formação de “massa crítica”, livre de preconceitos e bordões ultrapassados, ou reproduzimos sem criatividade modelos paliativos, bem dissecados por filmografias sensíveis como a desse cineasta mexicano, que me lembra outro mexicano, escritor de “Santa Maria do Circo”. Que todos possam habitar o vale da morte com o mínimo de dignidade, pela vida que tiverem o direito de viver, a saber: habitação, saúde, cultura e educação, alimento e espaço para criar (antigamente chamado de trabalho)…

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