AS LUAS DE SAUL SÁ

Pela graça dos Vagabundos de Deus, de Mario Mendoza, esse texto anagramático começa de trás pra frente. E pouco me importa se você chegará ao fim dessa longa história, na condição de um leitor, de um hábito em extinção, tanto quanto a escrita, ou se continuará seguindo a tendência da produtividade de nossa época, utilizando como substitutivo produtos fabricados em formato audiovisual. Alerto apenas para o fato de que com a escrita e a leitura na mão, o ganho é a reflexão de profundidade. Os alicerces são outros. Aviso dado, sigo.

Foi no ano de 1933, no dia 25 de abril. Quero dizer que hoje o gênio incompreendido da família Sá, se vivo, estaria completando 90 anos +1. Levando em conta os arquétipos revolucionários envolvidos pelas datas que antecederam seu nascimento, a morte e o esquartejamento de Tiradentes – o Jesus brasileiro – no dia 21 de abril, seguido do atual protetor da população da Cidade do Rio de Janeiro – 0 originário da Turquia, São Jorge, celebrado no dia 23 – ficou muito mais fácil lembrar de seu aniversário. Circundar datas por outras em modo associativo, ajuda a lembrar do calendário. Desse modo, resolvi comemorar as três datas em uma única noite, dedicando as anteriores a contemplação dos acontecimentos ao meu redor. Devo dizer que fui agraciado pela decisão, na sucessão dos fatos.

De trás pra frente, lá estava o dilema de fazer parte da 2a geração de uma linhagem de Titãs, tal como mencionado por Michael Douglas em sua mais que sincera entrevista com Pedro Bial. Filho de um monstro do cinema americano, o judeu Issur Danielovitch, de nome artístico Kirk Douglas, trouxe a mim a certeza de que filhos de grandes homens sempre estarão em desvantagem. Coube ao garanhão protagonista de Atração Fatal, fazer vários links familiares, entre eles com a sua neta de nome Lua, parte do meu anagrama, embora no plural.

É que nesse dia 23 de São Jorge, a Lua que a ele pertence na música de Caetano Veloso, iniciava seu período completamente cheio, e o que é melhor, estando nesse estado voluptuoso, com céu de nitidez cristalina e a meia-noite, exatamente no pino, como se fora um sol. Foi dela que se irradiou uma energia transformadora, inebriando uma população específica do planeta, que tomou algumas decisões coletivas, fora das garras do Planalto. E bem fora desse lugar de fala dos tais “territórios”, de uma política caduca, suplantada pelas sensações telúricas.

É que pouco a pouco, a população carioca vai se distanciando do santo que dá nome a cidade do Rio, São Sebastião, uma vez cansada da posição de vítima, corporificada na imagem do herói flechado, amarrado num tronco de árvore. A realidade de 2024 é outra, São Jorge dominou o espaço público nos subúrbios do Rio de Janeiro, como um Santo com o qual todos se indentificam pelas batalhas, não apenas aquelas que usam armas em filmes medievais épicos, mas a luta do povo no seu cotidiano mais simples. A batalha de pegar o trem lotado pra trabalhar e ganhar uma merreca, a luta pra pagar as contas no final do mês, o número infinito de batalhas que vocês podem anunciar de viva voz, e que resumo aqui a uma coisa: a luta pela vida.

O ato de estar vivo é uma eterna luta, uma guerra contra a morte, e nesse sentido mais amplo, São Jorge é o Santo que oferece garantias de vitória aos que desejam viver dignamente, ainda que um dia. É esse caráter de crença viva que leva, necessariamente as festividades que irradiaram a noite e o dia de São Jorge. Deu meia-noite e os fogos já entravam em cena, acompanhados de balões que emitiam fogos de artifícios nas cores vermelha e verde, fazendo com que algumas crianças, ainda acordadas, achassem até que eram balões comemorando alguma vitória do Fluminense. Nada disso, era Jorge chegando em seu cavalo branco. Alguém sabe o nome dele? É certo que não se chamaria bucéfalo, pois esse já tem dono famoso.

Mas foi na dose dupla, as cinco e as seis da manhã, que assisti o firmamento de Jorge. Ao redor de meu ponto de observação, aconteceu um fenômeno equivalente ao da queima de fogos do Reveillon. Num crescendo e em duas etapas, uma balbúrdia incontrolável tomou conta dos céus. É certo que algum profeta, se estivesse vivo hoje poderia até confundir o momento com a segunda vinda de Cristo. No âmbito da Cidade do Rio de Janeiro, já está feita a escolha: o carioca vai guerrear até o fim.

E qual seria a logística, quem garantiria os mantimentos para alimentar a tropa? Afinal, a laranja sofreu aumento de 39% nesse último ano, e Zeca Pagodinho, que chegou atrasado na feijoada que lhe deu a música, não teria sequer o bagaço da laranja no fim da feijoada. O feijão foi parar na estratosfera, junto com o arroz, numa combinação pérfida do inimigo, que elevou seus preços em 28 e 22% respectivamente, só de 2023 pra 2024. A turma da picanha com cerveja tá de sacanagem, quando afirma que “a massa salarial” foi elevada. Adoram essa filhadaputagem, diante da luta frente a precariedade habitacional, envolvendo quase de 7 milhões de famílias brasileiras. Ou estão fudidas por terem casas que não poderiam ter esse nome, ou estão fudidas por não ganharem o suficiente para pagar o aluguel e honrar com as contas cotidianas. “O que será que será, que andam suspirando pelas alcovas?”, perguntaria Chico Buarque, se fosse mais jovem e menos alinhado ideologicamente. A domesticação atingiu a todos os que outrora eram anti-sistema, hoje comprometidos com ele.

Pulando de pau e com o cacete na mão, segue a boiada, comendo no cocho ou no balde. A cevada faz esquecer os milhares de problemas em casa. A solução pragmática não é o conforto do colo do menino Jesus, esperando resignadamente que a morte venha para nos salvar, enquanto nos mantemos narcotizados numa paz que nos mata cruelmente. Para a grande maioria da população brasileira, só o Pix salva.

Mas afinal, e essa tal de Lua? Como definir? Começo pelas 297 luas existentes no Sistema Solar? Há lista de preferidas? Devo dizer que vivo no mundo da lua ou pluralizar seus mundos e planetas? E quanto aos imundos, as más línguas, as incompreensões? Até aqui, o cálculo de fabricação do nosso sistema solar nos leva a 4,5 bilhões de anos da Terra. Cada lugar tem seu calendário particular. Qual é o seu? Seguir os passos da lua, pode ser a única forma de sobrevivência de certas espécies, em tempos de aquecimento global.

Se estivéssemos em Saturno, uma olhadinha para sua maior lua, Titã, cor sépia pela presença de metano e nitrogênio reagindo, com fortes tempestades de areia nos fascinaria, suponho. Por ali há forma líquida, mas não de água. Estranho tudo isso não? Um dragão que voa será lançado pela NASA em 2028 pra aumentar nosso conhecimento e incertezas. Um DragonFly só pode ser nome de quem não é devoto de São Jorge, mas certamente viu a simpática franquia “Como Treinar o Seu Dragão”.

Poderia passar duas semanas aqui, apreciando as belezas e partes sombrias, inexploradas de tantas luas por aí espalhadas, Phobos, Epimetheus, Callisto, Hyperion, Atlas, Janus, Pan, Rhea, são muitas e muitas formas e circunstâncias, uma vida não basta. Quem quiser que vá em busca da sua preferida, compre um bom telescópio e mergulhe nesse universo apaixonante que é o céu, com suas luas e variações de um  mesmo tema. Quem sabe inverter a lógica atual, que deu ao sol poder supremo, e reverenciar a sutileza da lua dons a serem redescobertos, possa reduzir a temperatura e as tensões em fluxo contínuo de nossas circunstâncias planetárias.

Olho para os olhos e vejo cada vez mais vidros prismáticos, desprovidos do banho de lua. Seres noturnos e sapiência podem salvar alguma coisa desse mundo destroçado e turbulento, entusiasmado com a ideia dos políticos lobistas de aumentar o uso do PIB para aquisição de mais armas para um Armagedon digno de Juízo Final, decretado por injulgáveis em fim de carreira, carvoeiros da caldeira da pulsão de morte.

Ainda há vida na Terra, Salve Jorge, feliz 90+1, seu Sá. Tudo que me foi ensinado, aprendi, justamente pra fazer ao contrário. E nos espírito dos anagramas, escrevi e desvendo, AS LUAS DE SAUL SÁ, é o próprio anagrama, no título de uma revolução, uma volta em torno de si, como a lua faz, examinando minuciosamente a Terra.