MEU CARO AMIGO, SEM PERDÃO E SEM FAVOR

Meu caro amigo, nessa viagem de final de semana, não pretendo parafrasear a genialidade desafinada do Chico Buarque. Apenas começo, como se fosse uma carta, lamentando a ausência. Sei que estarei longe de você, por diversas razões. É que andar de bicicleta, nadar, escrever, ir a cenas de espetáculos, sem interrupção, cobra seu preço. Uma semana que valeu por cinco. Novas rotinas, seres vivos importam, tempo que se dedica, muitas vezes exige cortes de pequenos atos cotidianos. É inevitável.

Você tem razão em não se sentir motivado para assinar certos camarotes, incompatíveis com a sua trajetória. Mas nada contra ir pro meio da massa, ouvir o coro daquelas letras que você não sabe uma frase. Hoje é facinho, só precisa saber o nome da música com o uso do Shazam e procurar a letra no Spotify. Ah, mas você não sabe cantar, eu lembrei. A solução então é falar da “experiência musical”, de uma perspectiva antropológica, mesmo sem se-lo. Sei lá, as roupas dos presentes daquela tribo, ou os hábitos etílicos dos presentes, preço das bebidas, etc. Faça ali um bom trabalho de cobertura e deixe as suas impressões. Sua história permite.

As promessas de Sexta se cumpriram com sobras, num encontro artístico saudável e despropositado, desses sem compromisso com audiência, sucesso ou lucro. Não que isso seja proibido ou não possa acontecer, mas é que o propósito é outro. O movimento de que situa a rua como um lugar legitimado para intercâmbios e trocas de gente interessada em se expressar, realizando Saraus onde a música, a poesia, as artes plásticas e formas mescladas de manifestação humanas possam se expressar é digno de nota. Para o Sarau do Calango, levei uma experiência que foi provocar reflexão a partir da adulteração da letra Caçador de Mim, como ponto de partida para abrir o convite-desafio aos presentes para participação no concurso para o samba cujo tema desse ano na Portela será Milton Nascimento. Sinopse na mão e calendário, o lance é jogar a turma na roda e ver o que vai dar.

O sábado que aparentemente seria ocupado por mais uma edição do Festival Geração 80, foi bem além disso, mostrando que nesse seu 18º aniversário, essa legião de amantes da música daquele momento, atingiram seu maior nível de realização. Com representações, quase simulacros de Renato Russo e Raul Seixas, os intérpretes proporcionaram um revival de enorme potência saudosista e utópica. Mas como disse Guilherme Lemos, do alto de sua lucidez, a presença dos “construtores” no palco, fizeram total diferença, pois Toni Platão, Marcelo Hayena, Avellar Love, Sylvinho Blau Blau, invocaram os deuses da década de 80 e entregaram histórias e recados ainda pertinentes para esse ano de 2024. A produção pode finalmente se lambuzar numa ótima torta de chocolate, fazendo coincidir o aniversário com o aniversário. Lágrimas e sorrisos se espalharam pelo estacionamento do Shopping, que descobre assim, para além dos corredores consumistas e sem relógio uma vocação ancestral, a conexão com as ruas via estacionamento. É muito provável que uma das intenções de transformar a Fábrica Bangu em uma mistura de Museu e Centro Cultural da Zona Oeste do Rio de Janeiro, se materialize décadas após essa luta ter sido travada, pela compreensão de que essa infraestrutura existe para cuidar da sociedade em seu entorno e de seus interesses de lazer. Lugar melhor não há.

Da minha parte, no domingo, fui obrigado a optar pelo conforto do sofá – exausto e virado que estava – de onde fiquei assistindo a 1a rodada do brasileirão. Contando com amigos em São Januário, e vendo a justíssima homenagem ao aniversário de Roberto Dinamite, o maior artilheiro da história do brasileirão. Desde que interrompi minhas visitas aos estádios, por meio da Associação de Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro – e mesmo antes disso – costumo assistir com alguma simultaneidade, as partidas que somadas, podem resultar em pelo menos uma. O tempo de bola improdutiva no futebol exige de quem assiste alguma criatividade para superar a esterilidade na qual estamos mergulhados. O atraso vai nos engolindo, sem sentirmos.

Já antevejo que nesse 2024, será um verdadeiro pega pra capar, sem escrúpulos, uma questão determinada por distâncias orçamentárias abissais.  É impossível misturar orçamento de pelada com orçamentos e comportamentos de padrão europeu. Times que ascenderam de divisões inferiores tem elenco e riscos menores que agremiações em que os atletas valem milhões. Colocar uma Ferrari pra andar numa rua de barro, usar terno a pé em estradas cheias de lama, absurdos praticados no país que não se vê.  O número de pernas de pau complica mais ainda essa equação. Há uma forte tendência em se querer substituir futebol por UFC, coisa de quem não acompanhou a evolução e não assiste o praticado nas melhores praças. Campos de futebol em condições incompatíveis com o nível de qualidade dos melhores espetáculos, me fazem pensar sobre essa palavra: espetáculo.

Uns caras pensadores atribuíram problemas ao modo como os espetáculos são manipulados em ambientes totalitários ou privados, o que se chamou de Sociedade do Espetáculo: “Na sociedade capitalista, o poder espetacular está disseminado por toda a vida social, na qual há simultaneamente produção e consumo de mercadorias e de imagens, constituindo-se na forma difusa desse poder, conforme definição dada por Debord em 1967, ou ocorre vinculado à ação do Estado, de forma concentrada, com a produção de imagens para justificar o poder exercido por seus dirigentes.”

Pra nivelar, jogo de tabelas sobrepostas, e o Flamengo, como falei, terá 6 jogadores titulares fora nas datas FIFA. Com o dinheiro que tem poderia ter 3 times pra resolver. Poderia. Em lugar disso,  vai chorar.
Quanto ao show perdido – que já assisti na Marina da Glória –  optei por substituir pelo maior Festival de Música da Califórnia, no deserto, que nessa edição, pelas mãos da Beyoncé levou Ludmilla. O bagulho é doido, estamos atrasados milhões de anos, mas temos as melhores platéias do planeta. A cena da produção musical evoluiu. O que vemos aqui é quase um artesanal acústico. Já nas pistas, um espetáculo audiovisual que dispensa psicodélicos.
Aqui, palcos e telões gigantescos, vaZzzzZios de arte. Precisamos de muito mais. Ver as Flores com DJ Snake e uma representação de Bansky ao lado de ET’s foi transcedental, genuinamente belo, sem trocadilhos. Agora, quem lacrou foi Doja Cat, ponto no fim da linha, algo a ser estudado. Ocupou integralmente o palco merecido, uma aula de espetáculo, recheada de arte.