O Homem Água

Já faz algum tempo, o Carlinhos Brown apareceu num desses Rock in Rio, na fase cidade do Rock decadente e convocou a toda o público a cantar uma espécie de jingle como campanha para que se bebesse água mineral: “bebeu água? água, água, água, água mineral… você vai ficar legal”. Parecia uma campanha promovida por um grupo econômico que não se revelou, e um alegre garoto propaganda em prol de um produto politicamente correto.

Acontece que alguns anos mais tarde, em 2008, esse mesmo Carlinhos Brown pode ser visto numa propaganda nos horários de alta audiência, os mais caros, nos canais de TV ao lado de uma marca de cerveja. Acredito que nos dois casos, a presença do músico será inesquecível. Ele associou sua imagem a duas campanhas sobre venda de líquidos em alta no mercado. Sabemos que as pessoas se matam no trânsito por conta dos índices de álcool nas veias.

Mas talvez ainda não tenha ocorrido a os leitores que as pessoas se matarão por causa de um copo de água. No Oriente Médio, existe a figura do “homem bomba” que por razões religiosas entrega sua vida a causa de combate de seus adversários. As razões são complexas. O que leva uma pessoa a ser um cordeiro voluntário disposto ao ritual de sacrifício da própria vida é para muitos um aspecto insondável.

Talvez dentro de uma cultura onde princípios e valores são mais importantes que preservar instintivamente a vida, essa posição faça sentido. Isso os distingue e torna suas famílias respeitadas em muitos casos. Há como no toureiro que morre na arena, uma nobreza em seu papel social e mítico. Trata-se do papel do Herói. Esse papel aparece na mitologia de diversos povos em muitas dimensões e cultua a morte como um maior dos sacrifícios.

No entanto, num outro extremo, um jovem em situação de risco nas ruas de uma grande cidade, influenciado pelas quadrilhas adultas que dominam o espaço urbano, pode já ter perdido a noção do valor da vida e nesse caso se transforma em um instrumento indispensável as máquinas de guerra. Numa máquina de guerra, os países mais industrializados entram com a tecnologia e as armas. Os países pobres, com a mão de obra que as operará.

Para que um homem vire uma bomba, é necessário a bomba e o homem. A bomba, mesmo que caseira utiliza material fabricado pela indústria cada vez menos artesanal para aqueles que disponham do dinheiro para alimentar essa fogueira. Pessoas se matam e isso é natural. Jovens morrem sem expectativa de um desenvolvimento natural de suas vidas, com direitos básicos como respirar, beber, comer e dormir com qualidade. Nada disso está garantido.

Então, dentro da nova ordem internacional, onde a lei da selva de mercado institui valor a bens insdispensáveis ao funcionamento da vida social, cria-se um impasse. Quem não dispuser de recursos para comprar esses bens, ficará sem eles. Se for o ar, morrerá em 5 minutos. Se for a água, em alguns dias. No caso do alimento em semanas ou meses.

É possível pensar que se a água é um bem de tal modo vital a vida humana, se os instintos de sobrevivência prevalecerem, se este componente ganhar portanto status de líquido vital e sagrado, uma religião se consagre. Não será o chá do Santo Daime. Será o copo da água sagrada. Não no cálice do Santo Graal dos Cavaleiros da Távola Redonda. Será a água sagrada para matar a sede dos que dela precisam. E nesse momento nascerão os “homens água”. Não serão como nos filmes, moléculas de água na epiderme, muito menos fabricantes de H2O.

O “homem água” viverá uma religião que considera sagrada a vida, e diferentemente do “homem bomba”, não matará, pois seu princípio e lutar obstinadamente pela vida. E nesse caso pelo direito sagrado a água. Aquele direito que em rituais religiosos levam ao batismo. E para os católicos ao momento da Ave Maria com a presença do copo de água abençoado pela oração e que será bebido com reverência e devoção.

Nesse dia, as fontes de água públicas, responsabilidade do poder público, que deve se organizar para desenhar as soluções técnicas e empresariais que garantam essa condição onde possível, devem atuar de forma vigorosa para garantir esse direito inalienável a toda população que representa.

Até lá, continuaremos convivendo com barbárie, bombas e muita truculência, desprovida de qualquer sensibilidade e inteligência, mas apenas numa luta insana por controle, poder e instauração de um terrorismo barato que congele a capacidade de iniciativa dos cidadãos.

O “homem água”, apesar de simbolicamente constituído de líquido, uma forma mais maleável é como a água mole em pedra dura. Tanto bate, até que fura.

Vladimir Cavalcante – New Executive Officer – AREEVOL

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