O lugar da Oralidade

Um decreto presidencial em outubro unificará a ortografia dos países de Língua Portuguesa. A justificativa de que essa iniciativa facilita a tradução de documentos em organismos multilaterais é no mínimo suspeita. Historicamente, os idiomas de países colonizadores, como é mais recente caso de Portugal, Inglaterra, França, decretaram a morte de milhares de línguas e dialetos.

O fortalecimento de uns implica no enfraquecimento de outros. Esse fortalecimento se deu numa época em que os processos de hegemonização não tinham telhado de vidro. Não é o caso no século XXI. O planeta despertou para uma palavra importante nesse e em outros casos: diversidade. A defesa da consulta pública encomendada para outubro de 2008 consta de matéria do JB de 26 de julho de 2008, cujo título na seção país é “Acordo ortográfico sairá em 2011”. Favas contadas, decisão presidencial, por decreto lei.

Nem todo mundo quer tomar coca-cola. Nem todo mundo quer ter como língua mãe o inglês ou o mandarim. Algumas pessoas do planeta entenderam que a hegemonização está associada a práticas autoritárias, que eliminam a diferença, oprimem minorias e reduzem o espaço para o novo. A inovação, incluída a linguística, tem seu ponto de partida em movimentos minoritários. Foi dentro de uma realidade multicultural que o estado soviético esvaziou-se.

O Brasil se situa isolado de seus vizinhos geográficos, que falam espanhol. Essa barreira impede muitas ações de cunho social, cultural e econômico. Um dos fatores decisivos para integração da América Latina e de seus povos, em especial o brasileiro, é o idioma. Iniciativas que atenuem o problema das barreiras do idioma, ao invés da solução clássica, surgem como alternativa: aprenda espanhol, para quem fala português e aprenda português, para quem fala espanhol. Uma Universidade do México trabalhou soluções que permitissem a essas línguas irmãs a possibilidade de que se compreendam. Ou seja, você, brasileiro continua falando português, mas é compreendido por quem aprende o que chamaríamos de “portunhol”.

É dessa perspectiva que um grupo de artistas e intelectuais latinos se agrupam em defesa de um movimento cujo título é “Portunhol Selvagem”. Essa vanguarda vem se reunindo em Assunção numa  jornada cujo nome é “Kapital Mundial da Ficção”. Livros, músicas, filmes e idéias são incorporadas a esse lugar dentro de um espírito, onde a preservação das coisas é mais importante que a sua unificação. O respeito a cultura oral é também uma novidade. O presidente brasileiro, oriundo de uma região pouco letrada do Brasil e no entanto riquíssima em literatura de Cordel, por exemplo, deveria estar sendo alertado sobre as posições de vanguarda que nosso momento admite, no lugar de assinar por conta de um assessoramento retrógrado decretos datados de cheiro de mofo dos séculos do imperialismo.

Esse grupo é contrário as noções-requisito a unificação proposta no decreto, pois “são contra o pensamento único” e consideram o portunhol a língua mais democrática da América do Sul.

Em novembro do ano passado a ONU realizou um evento onde alguns grupos de grande poder econômico como o Google, Yahoo, Microsoft, entre outros, apoiados por seus respectivos representantes de governo defendiam a unificação e localização de conteúdo. A fórmula proposta era muito simples. Para ter acesso a mercados, basta traduzir menus de programas de computador e páginas da internet. Se for um programa de  TV ou cinema, é só oferecer dublagem ou legenda.

Para esses países, que se aproveitam ao máximo da posição tecnológica, nem os domínios da internet podem ser publicados com nomes, letras e códigos não existentes no alfabeto anglo-saxão. Esse absurdo e a abertura para a diversidade serão corrigidos, graças as ações da ONU e dos países interessados em romper a hegemonia do idioma inglês ou de outros mais comprometidos com a diversidade.

O verdadeiro sentido da produção de conteúdo local não passa pela crença de que todos devem obrigatoriamente saber inglês para serem considerados cidadãos do mundo. O legítimo cidadão do mundo aprende a respeitar a realidade multi-idiomática que preserva a riqueza de um ambiente comunicacional complexo. A tecnologia existe para isso e pode servir ou não a esse objetivo. Nesse sentido, a afirmação de que “o acordo ortográfico facilitará os organismos multilaterais” é das mais falaciosas. A compreensão que se espera de representantes nesses organismos é de que esses sejam sensíveis a necessidade de compreensão da realidade do outro, no lugar de impor uma norma que esteriliza as possibilidade de convivência num ambiente culturalmente diverso.

Essa tem sido uma das principais preocupações da ONU em suas iniciativas por uma sociedade da informação e do conhecimento, com uso de uma internet em que todos os países e línguas do planeta estejam adequadamente representados em todas as suas diferenças e peculiaridades. Isso inclui evidentemente países e culturas de tradição oral, cuja preservação pode ser de valor inestimável para  futuro do homem no planeta.

Faria mais sentido o desenvolvimento de empresas de software capazes de criar programas que permitissem a tradução simultânea dos conteúdos locais minoritários para os idiomas de língua dominante. Ou softwares que permitissem que o ato de fala fosse transposto para escrita. Assim, analfabetos poderiam escrever. E guardar seus escritos, e aprender com eles. A tecnologia de reconhecimento de voz para essa finalidade se popularizou com programas de empresas como a IBM, a Dragon e a MacSpeech. A IBM desistiu do mercado. Sobraram duas, que não priorizaram línguas como o português. Apostam na unificação do mercado e na hegemonia do inglês.

Houve uma época que engenheiros americanos consideravam dispensável incluir caracteres além do padrão ASCII nas impressoras matriciais. Foram anos de impressão sem acentuação. Conheci brasileiros ligados ao setor de informática que defendiam em Congressos, “uma revolução no idioma português”, dispensando o acento, por exemplo, como prova de modernização da língua e atenção aos novos tempos. Anos mais tarde surgiram impressoras com capacidade de expressar imagens com cores e complexidade. A tecnologia evoluiu. A mentalidade hegemônica não.

Um proeminente pesquisador brasileiro, defendeu ano passado em plena Academia Brasileira de Letras posição semelhante, ao dizer que o Google ditará o modo como as pessoas escreverão o certo e o errado, baseando suas decisões na estatística de ocorrência das palavras…

Desenvolver softwares que incluam milhares de idiomas, seria um tiro pela culatra para países hegemônicos e para aqueles que fundaram as leis econômicas da demanda de escala e do volume de produção. Abriria seus mercados e fragmentaria a produção. Esse tipo de localização de conteúdo não será dada. Terá que ser conquistada.

Um exemplo incontestável dessa importância passa pela descoberta advinda de estudos sobre uma tribo indígena no Brasil, em que dogmas científicos sobre a natureza intrínseca dos números no aparelho cognitivo dos homens foi posta abaixo. Esses índios desconhecem os números em sua língua. E que portanto os números são um desdobramento cultural e não biológico. Esse fato leva a pensar que a extinção de uma língua significa a extinção de uma cultura. A unificação das línguas representa um modo elegante de se promover o que chamaria de “Genocídio Cultural”.

Em tempos de multiculturalismo, intercâmbios e ampliação da base de riqueza a partir da compreensão do outro, a unificação é injustificável e inaceitável. Quanto mais assinada por um presidente como o nosso, que se alertado defenderia e honraria a tradição oral de sua gente, de seu povo. O Brasil é um país sonoro e oral. O Ministério para Assuntos Estratégicos brasileiro deve estar atento as consequências da posição brasileira no tabuleiro do poder mundial.

A AREEVOL, participante ativa de iniciativas pelo desenvolvimento humano com o uso de tecnologias digitais, está comprometida com a diversidade.

Vladimir Cavalcante – New Executive Officer

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