O SARAU, O SENTIR E SUAS EPÍGRAFES

Sua literatura está em dia? Mentira. Sei que você anda lendo pouco. A consequência disso para o mundo prático que frequenta? Nenhuma. Se a leitura anda rasa, imagine a presença em rodas de poesia, e saraus? É muito provável que nunca tenha frequentado algum. Tenho notícia mesmo de adultos que nunca foram ao cinema, teatro ou exposições de arte. São ingredientes desnecessários na luta pela sobrevivência.

Foi por essas e por outras que me obriguei a visitar o Sarau do Calango.

Tudo começou no dia anterior. Por aqui não há antes, durante ou depois. O Espaço-Tempo foi mesclado. E gerou uma espécie híbrida, como no caso da mestiçagem alternada no Brasil. Me causa espécie ver cães cheirando rabo de gatos e gatas. Não deveria. Há algum motivo pra isso. No nível de desgaste que as rotinas 24/7 em diferentes fusos me consumiram nesses últimos 30 dias, sabia que pra estar presente com a intensidade máxima, alguém ia dançar. Dança eu, dança tu, dança o rabo do Tatu.

Nesse caso, ou iria ao show dos Gilsons na Lona do pai, ou iria no Sarau do Calango, que foi adiado do dia de Zumbi dos Palmares por questões climáticas, para o Dia Nacional do Samba. Precavido, fui logo escrever UMA ESPÉCIE SUICIDA NO SEXTO APOCALIPSE, me desincumbindo da tarefa na madruga. Enquanto o Sarau não vinha, continuei a arrumação do que restou do meu acervo de literário, do ataque dos cupins intelectuais de esquerda. Uma miríade de detalhes e memórias, que uma pessoa normal jogaria no lixo, tal o valor financeiro que possuem.
Não eu.
Separando parte a parte, guardei sacos vazios de Cosme Damião – sobras da última distribuição de doces em setembro – num vaso de porcelana do Santuário. Consegui separar uma coleção de fitas cassetes, ainda sem saber onde guardar e encontrei três livros encadernados, escritos por mim.
Um deles, com código e registrado na Biblioteca Nacional, minha primeira experiência como editor-autor. Os outros dois, haviam sido perdidos!, em computadores roubados. Sem dispor dos arquivos digitais, sobrou uma única cópia impressa, resgate arqueológico. Atribuo a generosidade dos cupins para comigo. Um dos livros sobreviventes, com nome escrito no envelope velho e de bordas carcomidas: ELA ME DEU UM LIVRO. Um título de triplo sentido.
Ela me deu
Quem deu o livro fui eu
Ontem outra vez, comprei um livro e dei…
Pra uma outra ela, sem sequer me dar conta de que era uma história parecida…
Presenteei-a com É SOBRE SENTIR, da escritora Thaina Barbosa, presente com suas reflexões, a quem conheceria ao longo do evento.
Levei para o Sarau libretos da FLIP DE 2011, onde filmei pelado a Macumba Antropofágica do Zé Celso, além de 3 livros que decidi dar, como forma de criar esse hábito, nessa turma atuante, mesmo quando não se oferece alguma vantagem material. Questão de reciprocidade no afeto, pra um Sarau que merece carinho. Presentes são estímulos aos que estão presentes.

Fui tomar banho, veio o insight… Peguei os sacos de Cosme Damião e coloquei uma fita-cassete em cada, escrevendo o título de cada uma no verso do saco, o que facilitaria a identificação ao anunciar na performance o conteúdo. Performance? Como assim? Se era dia de celebrar Zumbi? É que lá, rola um tal de microfone aberto, havia uma chance. Lá estavam eles, Gilberto Gil in Concert, Chico Buarque, 35 anos de Francisco Alves, Gal Costa, Roberto Carlos, Carlos Gardel, o Peru do Costinha, etc.

No Kit improvisado-descompensado, havia uma placa lilás purpurinada, com letreiro branco onde se lia: O AMOR É CEGO, e levei um óculos escuro. Pelo caminho, criei para os mais jovens o DESAFIO ANALÓGICO. Pela faixa etária, considerei mesmo que muitos nunca tivessem visto algum aparelho de fita cassete, pela facilidade do streaming… Minhas melhores audições aconteceram em Brasília, usando um Walkman da Sony, ouvindo Earth Wind and Fire. Aos que me responderam “imagino como é o som”, respondo: só tendo usado pra saber…

Tal como o Dia dos Mortos, os organizadores aproveitaram a noite para homenagear Kzk SérgioO Poeta de Antares, porque eternizar é preciso, muito especialmente os nossos. A questão da ancestralidade, cultuada em tantas filosofias e religiões, enfrenta por aqui uma resistência, tendência ao apagamento das memórias. A bem da verdade, parece até que só Jesus tem o direito de ser lembrado para a eternidade. Não na praça da Capelinha.

As evocações também trouxeram nada menos que Marcio Rufino, um desses duros na queda, e seu abacaxi trazido de Angola, que esse país terá que descascar cedo ou tarde, se não quiser ter que engolir com casca e coroa. Noite longa, pulei atrações pra comer e beber, antes da Banda Cidade Partida, sonoridade azeitada no dendê, de linguagem própria, um desses autorais com que a gente esbarra pelas esquinas, e que não precisam esperar pelas multidões para acontecer.

É que o acontecimento é. Ele se basta. Como um perfume, feito de essência e fixador. O fixador, pode até dar escala, ampliar o tempo de uso. Mas de que adiantaria isso, sem a essência. Essa sim, pode ser verificada em qualquer escala, numa fitinha de papel ou num vidro de amostra grátis. É ela que importa, para além das multidões e dos shows para 100 mil. Foi assim com a banda Djéli, que não se intimidou com o adverso e seguiu num quase-acústico aconchegante. Batismo de fogo, pisar em brasas, vida real.

Ao talento se dispensa a curva do mercado, vale preservar sua  expressão, marca identitária. Na calada daquela noite, histórias espalhadas, e algumas epígrafes, para fixar no Santuário.