Saramago cego e Machado alienado

Estamos tentando saber com quantas forças materiais e espirituais um autor precisa embater antes que sua obra venha a público. A realização de um artigo, embrião de livro intitulado “O Autor Negociador” está próxima. Enquanto isso, que tal a promoção de encontros entre autores aparentemente distantes em suas produções?

Sinopse: No ano do centenário da morte de Machado de Assis, muitas foram as homenagens. O cinema perdeu a oportunidade de fazê-lo. A fábula do doutor Simão Bacamarte, que funda um hospício em Itaguaí e resolve internar nele a cidade inteira, é uma antecipação ao texto de Saramago, com os requintes adicionais de humor e picardia que o bruxo das palavras realizou. Fernando Meirelles, menos conectado com o mundo local do viajante que nunca saiu do país, preferiu aplicar uma jogada de marketing para ganhar visibilidade internacional. Perdeu uma oportunidade. Leia abaixo sobre o desperdício da oportunidade.

Duas obras se justapõe no espaço-tempo. O trabalho de Fernando Meirelles, cuja opção pela internacionalização de seus trabalhos, abdicando de uma visão que valorize a genialidade local. Tudo bem que a Academia estava a comemorar a morte de Machado de Assis. A tradição e o prazer mórbido de fazer da missa de sétimo dia o centenário, pode quem sabe ser substituído pela celebração do nascimento de poetas e escritores. O cristianismo fez isso com Jesus.

A Obra de Machado de Assis, suplanta na maioria dos aspectos a de José Saramago. Deixa a desejar nos quesitos que atribuem valor universal as mesmas. Sua cor, o coloca no lugar dos discriminados da época e de hoje. Sua nacionalidade o coloca na posição de detentor do domínio inferior do idioma português. Algo como se os americanos não pudessem ter ótimos escritores por terem herdado o idioma dos inglêses. A Unificação do Idioma Português faz parte inclusive desse contexto de dominação pelo controle do centro de poder sobre as decisões sobre a língua.

Ouvi dizer que Carlos Drummond de Andrade teria sido um poeta de quilate universal. Mas o universal, bem sabemos, tem suas restrições ao talento. Tem sido assim com o clube dos países mais ricos. Daí o Brasil fazer parte de um outro grupo, que contempla o diálogo entre vinte países. Talvez tivéssemos o dever de fazer pela literatura o mesmo que a diplomacia fez pelo país no campo da política internacional.

Conhecedor das regras do jogo internacional, Fernando aderiu ao ato mecanicista de utilizar as mesmas em proveito próprio. Sem rupturas, sem revolucionar. Diferentemente de um Glauber Rocha, por exemplo, Fernando é um representante típico da classe média paulista. E os paulistas são a vanguarda da retaguarda do país, todas as vezes que mergulham em suas aspirações em copiar em primeira mão o mundo que tanto admiram fora do Brasil. Para esses, pouco importa o mundo que existe dentro do Brasil. Há exceções. Mas o quadro atual é bem esse.

Como no caso do Oscar para o cinema, esse que o Fernando Meirelles almeja ganhar um dia como diretor de um filme global, ser laureado com um Nobel de Literatura envolve muito mais do que o simples talento e valor da obra. Ser branco, de uma cultura européia, de um país com tradição imperialista e disseminador da língua portuguesa são alguns dos fatores que colaboraram muito para  que José Saramago ganhasse o Nobel. E isso deu a ele o status que Machado de Assis não tem. É claro que ambos tem talento. É claro que Machado morreu faz 100 anos e que Saramago, que veio muito depois, ainda está vivo. Então o alcance da visão de Machado o alça a um nível de qualidade neste quesito que me faz admirá-lo como superior a Saramago. Lhe falta o status da CEE.

O Brasil teve  um escritor dos mais geniais, que no entanto perde terreno ao ser avaliado em sua qualidade por uma outra opção estilística. Enquanto Saramago faz bem aquele tipo amargo, de uma densidade de pessimismo compatível com a visão de Schopenauer, Machado, que também lia o filósofo, era acima de  tudo um escritor de um humor muito fino. E trazia para a obra, sua apreciação pelas mulheres. Por sua ligação com o humor e com o universo feminino, Machado de Assis perde pontos duas vezes  diante das casas que atribuem valor a uma obra humana.

Sua genialidade fica portanto mais obscurecida por se tratar de um negro no Brasil. Meirelles, evidentemente um cineasta oriundo de uma camada social brasileira elitizada, age como a elite brasileira em geral: como bom colonizado, ao invés de valorizar os talentos locais e pesquisar suas potencialidades, se rende a “genialidade” dos produtos consagrados globalmente. Jamais veria o cineasta realizando um filme como “Baixio das Bestas” ou “O Cheiro do Ralo”, por exemplo. É brasileiro demais, enquanto linguagem e conteúdo.

Meirelles faz uma obra tipicamente colonizada, para conseguir uma espécia de correlacionamento simpático com os ícones globais e se esquece da vida e da morte de Machado de Assis. Certamente não leu as obras completas do maior escritor da língua portuguesa no Brasil. Talvez nem saiba da existência de um livro do primeiro  presidente da Academia Brasileira de Letras: O Alienista.

Há diferenças entre O Ensaio Sobre a Cegueira, que Saramago realiza com densidade quase depressiva e O Alienista que Machado de Assis transforma em quase uma comédia. O que não significa que a seriedade ao abordar o tema retirem seriedade do trabalho visionário do nosso bruxo das palavras. Decepcionante é ver o filme de Meirelles, que a meu ver tem a estratégia certa numa alma errante. Para o cineasta, o mérito ficou limitado a capacidade de articulação com parceiros que alçaram a condição de celebridades internacionais. Nesse sentido, o filme é um projeto de êxito.

Mas do ponto de vista da oportunidade de fincar a densidade estética de sua obra, como vimos por exemplo em Glauber Rocha, Meirelles desperdiçou uma chance. A chance de capitalizar os 100 anos da morte de Machado, atribuindo uma justa homenagem de modo que aproveitasse toda a potencialidade da obra. Sem cair nas armadilhas de uma literalidade, se a envergadura de cineasta fosse a de um grande, se proporia a encontrar soluções estéticas que atualizassem o texto de Machado o colocando nos termos de uma linguagem cinematográfica para além do estilo descritivo de tantos trabalhos pobres feitos no Brasil com a nossa melhor literatura.

Foi assim com Brás Cubas, Escrava Isaura, e tantos outros sucessos de efeito internacional que incluem cinema e TV.

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